As “cataratas emocionais” numa tarde Alentejana
Ao
regressar ontem a casa em Vila Viçosa após cirurgia às cataratas nos dois
olhos, o meu pai admirou as paredes da nossa cozinha e resolveu elogiar o ar
branco e imaculado das ditas que são caiadas religiosamente todos os anos pela
minha mãe, reconhecendo que ao contrário do que julgou durante anos, as mesmas
não apresentam quaisquer manchas escuras de aspecto desagradável.
Sem
ser oficialmente nomeado tive de intervir automaticamente como juiz na gestão
de um conflito doméstico desagradável e de alto risco pois a minha mãe não
achou graça nenhuma ao comentário e ao facto do meu pai supor que lá por casa
se vivia com as paredes manchadas e a clamar pela cal que nunca chegava.
E
ele sempre a jurar que antes via as malditas manchas escuras em todas as
paredes da cozinha.
Numa
versão campestre e Alentejana, num fim de tarde de Janeiro do Século XXI, eu
vi-me assim no interior de uma edição revista e aumentada da Alegoria da
Caverna escrita na Grécia Antiga por Platão em “A República” algures no Século
IV antes de Cristo.
Mas
também numa terra de Calipolenses (aprendam por favor porque assim somos
designados nós, os naturais de Vila Viçosa), Callipolis (Cali=bela +
Polis=cidade), exactamente a designação utilizada para a cidade ideal sonhada
pelo filósofo nessa mesma obra, não é de estranhar que estas afinidades se
estabeleçam cruzando os séculos, que não só as intervenções do FMI nos
aproximam dos Gregos.
Certo
é de que antes como agora, aquilo que vemos e que convictamente acreditamos
ver, pode não corresponder à exacta realidade de um objecto, de uma pessoa, de
uma circunstância, etc.
As
nossas “cataratas”, por vezes mais emocionais do que até propriamente físicas,
oferecem-nos uma perspectiva, muito mais do que uma visão global exacta do que
quer que seja.
E
quantas vezes até conseguimos ver algo numa determinada perspectiva, apenas
pelo impulso de muito a querermos ver dessa forma. Reencaminhamos a perspectiva
no sentido preferido, tal qual fazem os políticos na avaliação dos números
relativos por exemplo à performance da economia do país num determinado
período.
Neste
contexto, ao ridículo se expõem todas aquelas pessoas que jamais aceitam
discutir as suas inquestionáveis verdades e rejeitam as achegas que as visões
alheias podem trazer para o desbravar conjunto do caminho que mais no aproxima
da verdadeira, objectiva e inacessível verdade do que quer que seja.
Do
encontro com os outros e da discussão nasce verdadeiramente a luz e quanto erro
pode encarnar uma pessoa orgulhosamente só e abraçada à sua umbilical
auto-estima super desenvolvida.
E
quanto erro e quanta violência podem surgir do confronto de duas ou mais “razões
absolutas” sobre um determinado assunto.
Ao
fim da tarde no meu regresso à cidade de Ulisses, com um luar de Janeiro a
iluminar-me a planície Alentejana de uma forma soberba, e já com a paz familiar
devidamente restabelecida à sombra de uma parede que os três já conseguimos ver
sem quaisquer manchas, deu-me para filosofar.
Sem
querer ser Platão (e muito menos Sócrates, por todas e mais essa política razão
tão do Século XXI).
Um Calipolense apenas, em trânsito, que gosta muito de pensar e que em cada
dia que passa tem menos certezas sobre o que quer que seja.
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