O meu caminho

Como se já não bastassem o ser domingo e a hora tão excessivamente matinal do meu voo para o Funchal, e ainda tive de suportar ao meu lado dois ilustres representantes daquela elite empresarial lusa que monta imbecis em BMWs, almas que substituíram a potência cultural pela dos automóveis, e mesmo a outra, a da virilidade, deve andar de rastos, pois em vez de terem os orgasmos nos legítimos ou ilegítimos leitos, têm-nos aqui nos bancos do avião, usando para isso o órgão com maior capacidade de distensão dos seus corpos bem trabalhados no ginásio: a garganta.
Tivesse eu uma caderneta para coleccionar disparates e ela ontem tinha ficado preenchida.
Dói-me a cabeça, preciso de um café e, depois de tanta presunção, venha de lá a água benta porque é domingo e eu ainda não fui à missa.
A Sé do Funchal está pejada de turistas que quando se apercebem que vai começar a missa, fogem de tal forma que parece que alguém lhes pediu que fizessem o pino.
Resta à minha frente uma “lady”, chamemos-lhe Estrelícia que deve ter-se levantado à mesma hora em que eu fui para o aeroporto, porque só assim consegue estar ali com tantos ganchos, pregadores e outras estruturas prateadas agarradas ao cabelo armado.
Juro que a minha árvore de Natal tem menos apetrechos e é bem mais discreta.
Não demora muito a que chegue o marido e se junte a ela, por certo depois de ter ido estacionar a viatura da “princesa”; e não é que o raio da mulher não faz outra coisa se não olhar para o homem com desdém, como se estivesse a ser vítima de dismenorreia mental, abanando a cabeça de tal forma que o brilho de tanto apetrecho metálico quase me dá a sensação a mim que estou por detrás, que tomei qualquer coisa ilícita e estou a ver a “lucy in the sky with dimonds”.
Traço-lhe a sina: esta “gaja” não tarda nada e será trocada por uma brasileira dengosa que faça cafuné a este homem.
E depois queixam-se.
Abstraio-me porque vai começar a missa.
Parábolas, o grão de mostarda, o trigo e o joio… e a homilia com o padre a falar de Gaza e a dizer que com tanta guerra somos tentados a pedir a Deus que deite ali uma bomba e destrua toda aquela terra.
Somos?
Ou será ele?
Eu ainda acredito que a melhor forma de curar um golpe num dedo não é amputar a mão.
Será que com tanta manipulação genética o homem se baralhou e já não sabe o que é o trigo e o joio.
Parece-me que hoje isto não está bom nem na presunção nem na água benta…
A missa acaba não sem antes existir o abraço da paz em que o marido se vira para trás e me aperta a mão e a Menina Estrelícia permanece a olhar para o altar, muito possivelmente a pensar que é estrela.
Ai Estrelícia que quando tu te deres conta já a Brasileira te deu cabo do penteado…
Saio da Sé e procuro um restaurante para jantar algures nas ruelas estreitas da baixa do Funchal, quando começo a escutar um Brasileiro a falar de parábolas com a ajuda de uma megafonia que não tem lá grande qualidade.
Olho à volta e vejo que é o culto da Igreja Evangélica que decorre no primeiro andar de um edifício.
A avaliar pelo sotaque do pastor, tenho a certeza de que o marido da Estrelícia ainda acaba a ouvir as parábolas lá em cima.  
Encontro entretanto o restaurante conhecido que procurava, o recomendável “Calhau”, e sento-me ouvindo na aparelhagem a voz de Sinatra no inconfundível “My way”:
“To say the things he truly feels and not the words of one who kneels.
The record shows I took the blows and did it my way!”
Corre uma brisa e finalmente as palavras parecem fazer algum sentido.
Olha que isto de encontrar o meu caminho por entre um domingo…

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