Tudo vale a pena…
O
prazer das palavras escritas, as minhas e aquelas outras que alguém escreveu
para mim e para a humanidade toda, faz com que em muitos serões, a minha
relação com a NOS se reduza ao estatuto de bancária com contributo mensal, com
a televisão a permanecer desligada.
Nessas
noites, para além da música, apenas o vento, que em São Marcos e nos meses de
verão, sopra forte e com uma “mostrenga” potência de temível adamastor, são
eleitos como companhia sonora.
O
silêncio é sempre uma mentira e uma ilusão, pois sabemos que o pensamento
“grita” em nós a cada instante; e isto não acontece só porque às vezes o vento
até consegue ganhar até à música no semear de palavras que germinam e fazem
desabrochar memórias.
Todas
as memórias…
Ontem
fiz um intervalo nas palavras escritas para terminar o Lego que os Ricardos me
ofereceram no aniversário.
Eles
não sabem, mas eu esperei precisamente 45 anos até voltar a receber novamente
um Lego como presente, depois de no dia dos meus 3 anos ter sido brindado com
um carro pela Tia Carlota, que ouviu então uma boa reprimenda da Avó Dade por
ter ousado oferecer ao “menino” uma viatura assim “esmigalhada” em dezenas de
peças aparentemente sem graça nenhuma.
Depois
de ter visto o carro montado, e depois também, a casa, a estátua, as pontes… e
tudo o que essas peças e a imaginação permitiram, penso que a avó terá mudado
de ideias relativamente à utilidade do presente.
Os
Legos são cúmplices da vida, dão-nos ou buscamos as peças, e arquitectamos e
damos-lhes a forma que quisermos.
E
quem um dia conseguiu fazer carrinhos a partir de pedras ou microfones a partir
de paus de uma oliveira, não tem dificuldade em montar um “Big Ben” a partir de
pedras soltas, pequenas e todas aparentemente iguais.
Cansado
do vento do verão de São Marcos e com o Lego já montado, quase sem saber
porquê, e talvez com algum toque revivalista, a música solta-me “A vaca de
fogo” dos Madredeus.
Já
não consigo precisar quem algures pelo final do curso e nos corredores da
Faculdade, um dia me disse:
-
Tens de ouvir. A rapariga tem um penteado estranho mas uma voz fantástica a
brotar de uma sonoridade única onde o acordeão vai dando o ritmo.
Eu
ouvi, e agora, muito mais do que aos dias da Madredeus, associo esta música aos
dias em que as muitas e variadas “peças” à solta pediam a arquitectura de algo
que desse corpo aos sonhos e vontades acumuladas ao longo deste crescimento em
paralelo com a liberdade, a minha irmã sete anos mais nova do que eu.
Um
privilégio, esta liberdade.
O
silêncio, as músicas e até o vento, às vezes soltam memórias, e nós que somos
de muito pensar, não conseguimos deixar de fazer balanços, acabando sempre por
deixar escapar um desabafo por entre uma ou outra lágrima:
-
Bolas… foi difícil mas valeu a pena.
Tudo
vale a pena… quando não nos traímos nas opções que fazemos na hora de juntar as
peças.
Mesmo
que nos chamem loucos ou até, às vezes, doentes.
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