Um pássaro no parapeito
Devo-lhe
o nome…
O
avô Joaquim era a pessoa que com mais perícia enrolava tabaco numa mortalha em
momentos em que as histórias lhe saiam melhor do que nunca. E quando beijava o
seu cigarro e o acendia, já as memórias estavam à solta e crepitavam como as
brasas da lareira a que ele injectava energia pelo sopro oferecido a um longo
tubo de metal.
As
histórias que nos faziam voar muito para lá daquela cozinha que tinha sempre
aroma de temperos, tinha a água fresca guardada em cântaros de barro, e onde a
comida era feita num enorme fogão de lenha que tinha incorporada uma torneira
de onde saía água quente e um forno onde na Páscoa se coziam os melhores
folares feitos de bolo finto.
E
a comida herdava sempre os sabores da lenha que o avô tratava com a perícia de
um mestre.
As
histórias carregadas com os detalhes do campo que provávamos juntos quando em
direcção ao Colmeal da Silveirinha, caminhávamos ao longo da parede da Tapada,
muito para lá do Paraíso e do Carapiteiro, na cumplicidade de uma terra que fazíamos
nossa pelos passos firmes e seguros, aprendendo eu o nome de cada planta e erva
que ladeavam as veredas… ou quando procurávamos ao longo da ribeira, o aroma do
poejo que permitisse temperar de Alentejo a açorda mais perfeita que alguma vez
comi.
O
campo sentido naqueles melões e melancias que nunca cresceram, na azeitona que
apanhávamos quando chegavam os dias frios ao redor do Natal, nas peras mínimas temperadas
de mel e que tínhamos em casa aos milhares, naquela produção de tomate que
parecia milagre da multiplicação, em número e qualidade; e sempre no melhor de
cada colheita que invariavelmente aparecia em nossa casa após viagem em cestos
e canastras de verga impecavelmente limpas, activando de aromas o melhor e mais
eficaz calendário dos sentidos.
E
no avô havia também o humor com marca de Alentejo expresso por exemplo naquela
história contada pela avó Chica quando numa determinada noite sentiu ao seu
lado que o avô urinava na cama e o despertou aos gritos, recebendo como
resposta:
-
Mas porque é que me acordaste? Eu estava a ficar tão aliviado enquanto sonhava
que estava a urinar para um canteiro da estação dos caminhos-de-ferro.
E
comigo, todo o afecto sempre por entre os beijos, as carícias, o olhar de
orgulho para o primeiro neto rapaz e a insistência em chamar-me carinhosamente “o
meu caga e tosse”.
Devo-lhe
portanto muito mais do que apenas o nome, inúmeras memórias a que cada dia vai
acrescentando eternidade.
Quem
dá tudo e o melhor de si, mesmo que objectivamente pouco aos olhos dos Homens,
é o mais generoso. E aquele que é receptor desse todo de alguém é um príncipe afortunado
que só pode reconhecer-se como o mais feliz do universo. Eu sou este último
pelo privilégio de um avô assim.
Aqui
em minha casa e no parapeito da janela pousam muitas vezes as gaivotas que
sinto me vêm trazer lembranças do mar.
Da
mesma forma, estas memórias tecidas de histórias minhas e perfeitas que me
acodem em tantos e tantos dias são as melhores lembranças de um campo que nunca
será meu, porque eu é que serei sempre dele.
Quem
pisa veredas sabe que não há caminhos impossíveis na concretização dos sonhos e
das vontades, e quem faz uma concha com as mãos para beber a água que corre
livre pelas fontes, conhece bem o valor incalculável da liberdade, da qual
jamais abdicará.
São
essas as lições do campo, são essas as heranças valiosas que eu guardo do avô
Joaquim.
Num
dia de muito sol, o avô Joaquim partiu faz hoje precisamente 33 anos, a dois
dias de eu completar 15 anos no meu pior dia de aniversário.
Lembrei-me
dele porque hoje enquanto tomava o pequeno-almoço olhando o Tejo e o Atlântico para
lá da minha vidraça, vi um pássaro que pousou no parapeito.
Hoje,
num dia de muito sol.
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