A primavera às vezes encontra-nos campeões
Já tomei o café e comprei o Expresso; é sábado, e como
sempre, sentei-me e li os destaques da primeira página do caderno principal e
vi qual o tema de fundo da revista.
Depois devolvi tudo ao saco e regressei a casa, cruzando-me
de caminho com um arbusto de folhas verdes pequenas e umas flores brancas que
perfumam intensamente o ar ao seu redor.
Lembro-me deste cheiro. Há arbustos iguais no lado
direito de quem sobe a Avenida das Forças Armadas e eu passava por eles nos
sábados de há trinta anos quando ia almoçar à Cantina Nova. Nesse tempo o
metropolitano só chegava a Entrecampos.
O porteiro da cantina vendia o Expresso.
Penso em tudo isto enquanto me apercebo que aquilo que
dá coerência a Maio e à primavera está muito para lá das flores e de quaisquer
hábitos a que tenhamos dado estatuto de ritual.
Dispenso o espelho e os detalhes superficiais a que
ele tem acesso, e sou eu pela fé quem oferece a coerência a todas as
primaveras.
A fé, mas aquela de crer em nós, porque quem não o faz
despreza tudo e até Deus.
Reconheço-me pois cruzando o tempo... cruzando os
tempos todos que tecem a vida; e sou hoje como antes um homem a quem apetece
viver.
Logo pela manhã deixei pendurada na cadeira do quarto,
a camisola do Benfica que vou levar logo à festa no Estádio da Luz. Está
preparada.
Por entre a fé, a primavera às vezes encontra-nos
campeões.
Quando regressava da cantina tomava o metro em
Entrecampos até ao Rossio e invariavelmente ia ver o Tejo, cumprindo de
passagem o secreto prazer de entrar no Martinho da Arcada e tomar um café com a
memória de Pessoa.
Agora vou contigo ver o Tejo e levo no bolso os poemas
que escrevi e te leio na antecâmara de um abraço.
A coerência das primaveras expressa pela mesma fé, a
mesma poesia mas com palavras infinitamente mais pobres, e aquela noção clara
de que a primavera às vezes encontra-nos campeões.
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