Ao jeito dos poetas
Quando as partidas de Trivial Pursuit se prolongavam para lá da hora razoável de uma
criança se deitar, e alguém dizia:
- Marta, tu tens que ir dormir porque estás
com olhos de sono.
A filha dos meus amigos Manuela e José Maria
respondia:
- Os meus olhos têm sono mas eu não tenho.
E os cafés que tomávamos nos sábados depois
de almoço mereciam a presença da Marta quando eu estava em Vila Viçosa a passar
o fim‑de‑semana com uma justificação muito lisonjeira para a minha pessoa:
- Hoje vou porque está lá o Quim e a conversa
é interessante.
O interesse da conversa não era mais do que
algum relato de viagem feito por mim; eu, baptizado pela Marta como "o
amigo viajador", ou então algum exercício interessante de inventar
Barbies:
- Para o Natal vou oferecer-te a Barbie
Ceifeira ou a Barbie Deprimida. Qual preferes?
O tempo foi passando e nós fomos vivendo
intensamente com ele...
Continuamos a conversar muito em viagens de
carro que partilhamos entre Vila Viçosa e Lisboa, e segue interessante
descobrir que há na Marta uma genética que eterniza o que foi e é a vida
partilhada no contexto do meu grupo de amigos; o querer e a ousadia de sonhar.
Ontem apanhei um escaldão na testa porque o
sol do meio-dia de Lisboa me atingiu durante a bênção dos finalistas na Alameda
da Universidade. Vinte e seis anos depois de ter estado no Estádio Primeiro de
Maio com as minhas fitas roxas fui ver a Marta a erguer as suas fitas amarelas
e brancas de Medicina Dentária.
Por cima das nossas cabeças passavam aviões
de três em três minutos, mas as asas criamo-las e alimentamo-las nós por sobre
os sábados e todos os dias.
Destemidos e irreverentes a caminho do melhor
destino: a coerência de sermos nós e sermos grandes.
E ali encostado à parede da Faculdade de
Direito, entre o Senhor Patriarca que falava do “Sal da Terra” e uma vendedora
que apregoava águas frescas a um Euro; eu tive a certeza de que por sobre
quaisquer detalhes dos dias, entre a fé e a logística mais pragmática e
objectiva, mesmo que os olhos a possam trair, a Marta sempre dirá com a alma:
- Os meus olhos têm sono mas eu não.
E seguiremos sempre amigos e de telemóveis na mão a
tentar não desperdiçar o pôr-do-sol dos domingos de Lisboa enquanto cruzamos do
sul pela Ponte Vasco da Gama.
Os dois ao jeito dos poetas.
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