Mentira
Existisse
verdade, e talvez as badaladas das 24 horas dos dias 31 de Março de todos os
anos, pudessem continuar a ser vistas como as pancadas de Moliére na antecâmara
da abertura do pano para a ilusão de um primeiro de Abril como dia de mentiras.
Só
que a mentira, a excepção, virou regra, e que importância tem ter mais um dia, ou
menos um, nos 365 ou 366 dias de mentira que um ano tem?
Na
política, saber mentir virou arte, assumindo-se que um bom político é aquele
que melhor se especializou, em palavras e acções, na arte de iludir todos os
que lhe dão o aplauso do voto em sucessivos “encores” do poder que lhe enche os
bolsos.
No
desporto, a corrupção e o doping sustentam os campeões da mentira, os melhores
ilusionistas no truque dos subornos e das “armas” químicas que dão a falsa
força que faz voar mais alto e ir mais longe.
Nos
negócios e na gestão dos recursos públicos e privados, a ética da verdade
morreu esmagada pela avalanche da mentira que sustenta o lucro que se deseja
fácil e volumoso. E a ambição cega e sem regras, ganhou o estatuto da
legitimidade pela aceitação que tem na opinião pública.
Na
vida, os biombos tecidos pela teia do “socialmente correcto” instalam-se e
conseguem camuflar o “sim” e o “não” ditados pela vontade enraizada na alma. Abafando
o que somos, pomos à tona uma caricatura de nós próprios, assente naquilo que é
mais cómodo e menos criticável pelas “leis” e “regras” que todos assumem mas
ninguém cumpre na intimidade.
O
“parece-lo” matou definitivamente a verdade do “sê-lo”, pura ilusão e
travestida realidade nos dias em que até a palavra “amor” anda nas bocas de
toda a gente ao ritmo dos mais elevados interesses políticos, sociais e
económicos.
E
assim, muitas vezes, reza-se o credo não por fé mas por bem parecer, compra-se
a nobreza em páginas pagas nas revistas do social, adquirem-se licenciaturas em
universidades e escolas privadas, compra-se um estatuto pela forma de falar,
pelo número de beijos aplicados na bochecha do parceiro e pelas marcas de
roupas, carros e acessórios…
A
mentira, tratada na intimidade por “mentirinha”, entrou de tal forma no nosso convívio
que merece já o adjectivo de “piedosa” quando lhe sorrimos e de forma
tolerante, a aceitamos como se verdade fosse, neste contexto em que a intriga é
o fruto de um apurado sentido de estratégia, e o boato, um exercício de
requintada imaginação.
As
mentiras, mesmo as mais “cabeludas”, são tornadas órfãs na morte dos réus
promovida pelos recursos económicos e recursos jurídicos; que nunca se sabe
onde acabam uns e começam os outros, sempre que falamos dos poderosos pois este
“Estado” da justiça é uma infindável “Casa Pia”...
Com
tudo isto, a sorte de ainda termos pimenta para juntar aos cozinhados, é ter
desaparecido definitivamente o hábito de a aplicar na boca dos amigos do
embuste. Destronaria a “Pasta Medicinal Couto” e viraria um bem muito escasso.
E
se ao primeiro de Abril quisermos dar o estatuto de um dia diferente, temperemo-lo
de verdade.
Se
difícil for a prática de tal dia, chamem a Boca da Verdade (La Bocca della Verità)
da Igreja de Santa Maria in Cosmedin, de Roma. A esta escultura, com uma enorme
boca e que era tampa de esgoto no tempo de Nero, é atribuída a particularidade
de ser intolerante à mentira, e pessoa que coloque a mão no seu interior e que
emita uma mentira com os lábios, rapidamente virará maneta.
É
que pensando bem, isto já não vai lá com pimenta.
Na verdade, ela até refresca…
Lúcida e oportuna reflexão. Já agora, recordo um neologismo muito em moda no discurso de alguns políticos e jornalistas - inverdades. Qual a diferença entre a acepção "inverdade" e mentira? Aparentemente nenhuma .... mas quando os "pantomineiros", designadamente os da "realpolitik", proferem o vocábulo "inverdade" em vez de mentira, não fazem mais do que tentar suavizar/branquear a mentira de facto.
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