Sangue, lágrimas ou o canto no país das tapas
A
Sara Montiel morreu esta semana, mas o seu espírito deve ter decidido
permanecer por aqui, encarnando desde logo no corpo da funcionária do meu hotel
de Madrid que, qual rouxinol, entre os quartos que arruma e o corredor onde tem
estacionado um estojo de dimensões escandalosas, não se cala nem um segundo,
tornando-se audível no interior do meu quarto mesmo estando com a porta
fechada.
Este
jeito de falar e cantar alto é algo que não nos assiste, apesar de sermos
vizinhos muito próximos.
Até
parece mal cantar desta forma e quando alguém nos surpreende a trautear que
seja, logo avisa:
-
Deves estar a adivinhar chuva.
É
um facto que, para um Português, a desgraça é permanente e “mesmo que não
estejamos presos, quase de certeza que a polícia anda atrás de nós”, mesmo que
não haja razão para tal.
Não
sei que programas vê a camareira do hotel mas por certo não serão as
telenovelas da TVI ou da SIC que são um exercício de puro masoquismo pois
possibilitam durante um ano o convívio diário com as lágrimas, o sangue e a
vitória dos “maus”, para depois, num breve e curto último episódio, ter o
prazer de saborear por alguns segundos a vitória final dos “bons”.
Mas
como nesse dia da vitória dos “bonzinhos” já começou outra telenovela que tem
os “maus” em grande, a vida é um permanente martírio e um “rosário de penas”.
Para
além do mais e na perspectiva da chegada ao trabalho, num hotel para fazer
limpezas ou a qualquer outro local com diferentes funções, o melhor trunfo que
temos para “animar” os colegas é descrever ao detalhe algum acidente com que
nos cruzámos na estrada. E então se há pormenores de sangue e pancada, o dia
está definitivamente ganho.
É
claro que isto justifica que abrandemos e paremos perante qualquer acidente
para recolha dos dados mais escabrosos que estejam ao nosso alcance.
Recolhemos
os dados e juntamos a voz ao coro da desgraça que rodeia sempre qualquer
acidente, quais carpideiras do asfalto sempre prontas a por o xaile negro por
cima do toutiço.
Uma
amiga que há uns anos teve um acidente grave na A1 e ficou retida no interior
do veículo semi-destruído, estando consciente só conseguiu ouvir o seguinte
diálogo entre as muitas pessoas que entretanto pararam:
-
Não tirem a gaja que ela fica paralítica.
-
E o carro está quase a explodir.
Animada
por esta simpática conversa, só lhe ocorreu dizer então aos seus
interlocutores:
-
Tirem-me daqui que eu prefiro ficar paralítica, a ter de explodir com o carro.
Imagino
as cantigas que estes dois “animadores” não cantaram no trabalho no dia a
seguir…
Para
além do mais, se a camareira fosse Portuguesa, o que estaria a cantar?
Se
tivesse vindo de um concerto do Tony Carreira, “ai destino, ai destino…”…
Caso
a rádio a tivesse colocado em contacto com a Mónica Cintra, “na minha cama com
ela”…
Ou
seja, rodeados de desgraça, sangue e lágrimas por todos os lados.
Não
sei se esta senhora tem como lema o “pobrete mas alegrete” ou o “quem canta
seus males espanta”, mas simpática ofereceu-me um sorriso muito aberto quando
saí do quarto e abandonei o contacto com o seu concerto informal que ela
continuou com afinco.
E eu também fiquei com melhor disposição.
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