Um dia tão… “Correio da Manhã”


A manhã de Lisboa está húmida e a exigir impermeáveis e chapéus-de-chuva, estes últimos colocados num recipiente próprio existente à entrada da Pastelaria, para que possam pingar à vontade.
Entro, cumpro o ritual do chapéu-de chuva e busco um lugar ao fundo da sala comprida, ficando virado para a porta e para a montra que me revelam os jardins da Gulbenkian.
Surpresa…
Toda a gente virou costas à porta e está sentada de frente para mim que assim me sinto um verdadeiro maestro a dirigir uma orquestra formada por seis intérpretes femininas.
Depois de olhar para a televisão colocada na parede atrás de mim entendo o porquê desta situação: Correio da Manhã TV 6 – Jardins da Gulbenkian 1.
Perco por goleada.
Enquanto elas se actualizam relativamente ao conflito Bárbara / Carrilho, à guerra Marco Paulo / Kátia Aveiro e absorvem as últimas notícias que chegam da prisão de Évora, eu fico como que parado perante as páginas abertas de uma caderneta em que os cromos divergem pelo desenho e grau de aprumo das sobrancelhas, os tons impossíveis do cabelo, as unhas de gel que lutam contra as asas das pequenas chávenas do café, os fios e os adereços comprados com cheques pré-datados às vendedoras que passam pelas repartições…
E todas bocejam e emitem pragas sobre o trabalho que as espera, presumo que mais pelas horas que vão dali até dezoito do que propriamente pelo conteúdo do mesmo.
Entretanto, o empregado que assassina a discrição pois grita tudo o que se lhe pede:
- Sai uma sandes de fiambre em forma aparada sem manteiga e um abatanado… sás xafori.
Que é também o mesmo que grita as contas e diz “eirós” e “córenta” em vez de Euros e quarenta; tenta que a mais velha das senhoras, a Dona Elvira, baptizada com um nome que lhe assenta que nem uma luva dado que ela deve ter nascido no tempo em que os seus homónimos veículos ainda atravessavam a capital e os Jardins da Gulbenkian ainda eram terreno da antiga Feira Popular… decida o que vai comer ao almoço:
- Picanhazinha, chocos à algarvia, dobrada à moda da casa…
Mas a D. Elvira que tem uma cara que parece denunciar que ela está há meio ano a inalar os vapores de uma central de resíduos sólidos, nem se manifesta.
Eu tenho a certeza de que ela vai acabar por comer uma salada de alface com queijo fresco para ver se consegue drenar-se e ficar com a mesma cara da menina do Correio da Manhã.
Está na minha hora…
Levanto-me, pago a conta que o “Córenta” apregoou à malta.
Ainda recebo com um:
- O amigo por acaso não tem dez “cêntimezinhos”?
Tenho, facilito o troco e…
- Óbrigadinho amigo e um bom dia.
Dirijo-me à porta, retiro o meu chapéu-de-chuva discreto da amálgama de outros de cabos dourados e prateados que parecem adereços dos travestis do Conde de Redondo, e saio.
Ainda pisco os olhos aos Jardins da Gulbenkian.
Que bom ainda os ter por ali num dia tão… “Correio da Manhã”.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM

Nossa Senhora das Descobertas

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES