Acelerar para o futuro
No
dia em que recebi o convite para a festa das Bodas de Prata que assinalam os
vinte e cinco anos de casamento de uns amigos de infância, fiquei também a
saber que o meu irmão, cinco anos mais novo, vai ter no sábado um jantar para
comemorar os vinte anos de curso, fui confrontado com o facto de uma colega cuja
idade anda pela casa dos trinta desconhecer em absoluto o filme com a Julie
Andrews, “Millie, uma rapariga moderna” que eu sei de cor e salteado, e acabei
sentado na cadeira do barbeiro a ouvir no melhor sotaque da Baía:
-
O siô todos os méis tem maisss cabelos brancos na cabeça e na barrrba.
E
tivesse eu tendência para a depressão e sairia a correr directamente para o
sofá de um psicólogo ou quiçá a afogar-me em alguns químicos do arsenal
terapêutico que a minha condição de farmacêutico me permite conhecer
perfeitamente.
Mas
não.
Acabei
a responder ao barbeiro que por este ritmo talvez em Dezembro já esteja apto a
ser um “Pai Natal” muito credível sem necessidade de recorrer a pastas de
algodão; e quando foi colocado por detrás de mim aquele espelho que me permite
ver se o altinho da nuca ficou bem disfarçado no corte com o pente três, até
consegui olhar para o espelho à minha frente e pensar de mim para mim:
-
Até nem estás nada mal.
E
desculpem-me a presunção mas como cada um pode tomar a que quer… auto-estima
para cima.
Já
no regresso a casa, não pude no entanto deixar de pensar como o tempo passou
demasiado depressa. Parece ter sido ontem que andávamos atarefadíssimos a
ajudar os nossos amigos a ultimar os preparativos para a festa da boda ou a montar
as patifarias costumeiras na ocasião, que por certo serão objecto de um post num futuro próximo.
Mas,
tempo por tempo, sempre é melhor olhar para o futuro, por muito boas que sejam
as memórias ou as histórias que coleccionámos num percurso mais ou menos longo,
onde a maior dificuldade esteve sempre associada aos momentos da despedida de
gente tão grata para nós num processo indutor daquela saudade que dói.
E
olhando para o futuro, activo se torna em nós nestes momentos em que o espelho
nos reflecte uma cara muito próxima daquela que nos habituámos a ver nos nossos
pais, um elevado sentido de urgência, para que não haja nenhum sonho ou vontade
que deixemos ficar órfão.
Que
não fique nenhum beijo por dar, nenhum momento de amor assassinado às mãos da
vil solidão, nenhum olhar castrado na sua vontade de gritar e cantar o amor, nenhuma
palavra por dizer ou escrever, nenhum livro por ler ou poema por dizer, nenhum
quadro por pintar, nenhuma canção por trautear, nenhum filme ou peça de teatro por ver,
nenhuma música por escutar, nenhum pôr-do-sol deixado ao abandono, nenhum
horizonte por espreitar, nenhuma praia sem os nossos passos marcados na areia
num caminhar conjunto e de mão dada, nenhuma árvore por plantar e nenhum fruto
por colher, nenhum perfume por roubar na carícia de uma rosa ou de um
manjerico, nenhuma montanha por subir, nenhum pão por amassar, nenhuma dança ou
ritmo por bailar, nenhum amanhecer sem o conforto de um abraço e de um espreguiçar
conjunto, nenhum sorriso por libertar, nenhum petisco por saborear, nenhum copo
de bom vinho por beber depois de um brinde com quem o coração nos pede que o
façamos, nenhuma viagem por fazer, nenhum gesto por cumprir, nenhuma conversa
abafada, nenhuma anedota ou piada sem o epílogo da melhor gargalhada…
E
adiar será talvez a morte da oportunidade de cumprir estas por vezes tão pequenas
coisas, privando-nos assim definitivamente de ser um pouco mais feliz.
Eu
sei que a vida nos é por vezes madrasta, obrigando-nos a adiar e a suspender
estes sonhos e vontades. Mas se isso acontecer que seja sempre por factores
exteriores a nós e que jamais carreguemos aquele duro fardo que se chama
arrependimento.
Vou
então despachar-me…
Não
é por mais nada, é que quando os meus amigos Manuela e Zé Maria fizerem as
Bodas de Ouro eu terei setenta e dois anos, e se agora já tenho hipertensão,
diabetes, estigmatismo e miopia, dores nas costas… para além de mau feitio,
nessa altura já devo ter doenças de todas as letras do glossário, devo ser um “velho”
podre de aborrecido, para além de que não terei quaisquer dúvidas das minhas
apetências para fazer de Pai Natal.
Tenho
no entanto quase a certeza de que continuarei a gostar de me ver ao espelho… e juro-vos
que tal não será por culpa do agravamento da miopia.
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