As paredes da vergonha
Já
há muito que a noite caiu sobre a cidade e é por entre as luzes que fazem de cada
colina os pedaços de um imenso presépio, que as gentes se cruzam na busca de
infinitos e insondáveis destinos algures entre becos e sinuosas vielas, mas
sempre unidos pela força de um eterno amor à cidade do Tejo, o rio que por ora
dorme e que só se dá por ele na luz de um cacilheiro que do Cais do Sodré se
faz ao sul.
Há
ecos de Liberdade no Carmo, anda à solta a poesia entre a Brasileira e o Camões
de mão dada com o homem das castanhas, há a voz e o riso do povo a ecoar pela
Bica na calçada que o elevador sobe lentamente, há o fado no Bairro Alto… e há
a universalidade, o ADN da cidade, que derrotou passaportes e fronteiras e que
nos fez um povo só.
Não
interessa se somos de cá ou fora, nesta noite somos todos, a gente de Lisboa,
aqui, no conforto de uma casa nossa e imensa, brindando à vida, mais com o riso
e as gargalhadas, do que com generosos copos cheios de um bom vinho.
A
nossa casa é sempre o sítio onde nos sentimos bem.
Eu
sou apenas mais um subindo a Calçada do Combro e cruzando-me com a multidão,
com o anonimato de milhares de rostos, mas no privilégio, doce benefício, de
uma paz imensa.
Queria
eu que a história desta noite tivesse acabado aqui, mas infelizmente assim não
aconteceu.
Entre
os sacos gigantescos de lixo com os despojos das habitações e do comércio, que
aguardam a passagem de um carro que os recolha, há gente, muita gente, dormindo
nas calçadas da cidade, abafando-nos os sorrisos pela consciência que em nós
despertam da sua dor imensa.
Só
a lua e Lisboa parecem não lhes ter virado as costas.
Faz
hoje precisamente vinte e quatro anos que caiu o muro de Berlim numa noite em
que acreditámos jamais se construiriam paredes de vergonha para separar cidades
e para afastar os Homens.
Pura
ilusão.
Talvez
como nunca antes, persistem muros de vergonha em todas as cidades, muros sem
cimento ou sem tijolos, mas muros erguidos pela imbecilidade desta ditadura
económica que retira dos Homens a dimensão de uma vida e lhes dá o estatuto de meras
e simples coisas, um número a mais ou a menos nas estatísticas que sustentam o
poder.
Em
Lisboa…
Persistem
ecos de Liberdade no Carmo, há poesia entre o Chiado e o Camões, há povo…
Oxalá
nunca morram e os consigamos sobrepor a toda a indiferença que nos marcam os
dias.
Necessitamos deles mais do nunca para fazer novas cidades. Cidades sem
muros, sem paredes de vergonha.
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