“Se estivesses aqui o meu irmão não teria morrido”
Era
o fim de tarde de um domingo do verão mais quente que alguma vez vivi, 1981.
A
porta aberta dispensou o gesto habitual da mão enfiada pelo postigo para abrir
o trinco da fechadura que nunca teve chave e, escada acima, o silêncio da gente
vestida de negro abafou-me o grito que ressoava sempre no eco daqueles degraus
que a meio faziam uma estranha curva. Era inútil chamar por ela, a avó Chica jazia
inerte no leito que algumas vezes partilhou comigo na noite que antecedia uma
qualquer ida ao campo, habitualmente para lavar a roupa nas águas límpidas de
um ribeiro ali para os lados da Fonte Cebola e do Monte das Quatro Cruzes.
Os
espelhos do quarto, onde eu desde a cama a via pentear-se pacientemente na
elaboração de uma longa trança depois enrolada num toutiço, reflectiam agora o
seu rosto que estranhamente negava o estatuto de cadáver e sorria para nós.
Sem
tempo para que eu afinasse o grito e pudesse chamar por ele ao longo da escada
da estranha curvatura, o avô Joaquim partiu também treze dias depois, e com ele
morreu para mim a casa mais alegre que alguma vez conheci, a casa da janela que
vivia enfeitada de cravos, a casa da cozinha que tinha um alguidar de aromas
que a perfumavam a partir do poial dos cântaros, a casa de altos tectos onde
pendurávamos uma balança enorme de dois braços que nos permitiam pesar as peras
muito pequenas que trazíamos do Colmeal da Mulatinha, que ficava muito para lá
do Carapiteiro mas quase encostado à parede da Tapada Real.
Jamais
saberei se nesse estio com marca de Alentejo, o verão dos meus quinze anos,
comecei a aprender o que é a morte, ou se tão-somente comecei eu próprio a
morrer, iniciando uma longa viagem para um destino que a fé me impõe acreditar
que não é um fim mas apenas um passo mais, de encontro à eternidade.
Porque
se é certo que a morte de alguém que amamos nos ensina mais sobre a própria morte
e nos familiariza com ela numa intimidade que a faz tratar por tu, também é
certo que morremos, que partimos lentamente ao ritmo da partida de todos
aqueles que nos fizeram como somos e nos deram os dias mais felizes das nossas
vidas.
E
a vida hoje trouxe-me até Guimarães e foi na Senhora da Oliveira numa nesga de
meia hora algures por volta do meio-dia, que pela fé, na Eucaristia, me uni a
Deus e a todos os meus mortos.
Ao
ritmo da chuva que insiste em cair sobre o dia, o padre repete no Evangelho as
palavras da fé de Marta, irmã de Maria, a propósito da morte de Lázaro: “Senhor,
se Tu estivesses aqui o meu irmão não teria morrido”.
E
o Senhor ressuscitou Lázaro.
Ecoam
em mim estas palavras nos instantes em que me devolvo às ruas da cidade
Património da Humanidade e, passo a passo caminho pelos trilhos estreitos
ladeados pelas perfeitas fachadas de granito.
Vou
só com os meus pensamentos e as minhas memórias apercebendo-me que enquanto eu
estiver aqui, estarão vivos comigo e em mim, todos aqueles que eu amei, que me
amaram e que pelos afectos se inscreveram como imortais na minha história
pessoal.
Se
as palavras de Marta a Jesus se referem à vida eterna, também é verdade que a
uma escala muito pessoal e não divina, também se aplicam a nós pois é eterna em
cada um, a vida de todos aqueles que nos deram e nos dão vida.
O
dia de finados é afinal um dia de ressurreições através da bênção das memórias,
um brinde aos que por tanto nos amarem viverão para sempre em nós.
E
as lágrimas que insistimos em chorar naquele dia em que os espelhos de casa
reflectem o rosto inerte dos nossos, são apenas de saudade, são pedaços desta
tristeza que sempre sentimos quando temos de dizer um “até já” a todos aqueles
a quem tanto queremos e que tanto queremos junto a nós.
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