As lições improváveis
Há
muito confirmei que a vida é um processo contínuo de aprendizagem, sendo a
própria idade a desmontar aquela falsa ideia que nos acode em jovens, de que
chegará o dia em que seremos essencialmente emissores de informação, “mestres”
do alto de uma cátedra legitimada em grande parte pelo muito que já vivemos.
O
tempo vai de facto ensinando muita coisa, sobretudo através das experiências
que vivenciamos e das pessoas que connosco se cruzam e partilham os dias, mas
estar vivo é sinónimo de abordar cada amanhecer com a sofreguidão de aprender,
muito mais do que com a certeza do muito que vamos ensinar ao mundo.
Até
porque o que de melhor temos para ensinar aos outros, passamo-lo de forma
natural e espontânea na virtude de sermos nós próprios e sendo grandes no que
somos e fazemos, com o exemplo a ser muito mais eficaz do que a conversa na
concretização desse desiderato.
E
dos dias vamos colhendo lições que nos surgem quando menos esperamos e
inspirações que podem chegar dos “professores” mais improváveis e das
circunstâncias aparentemente mais banais.
Do
alto dos meus quarenta e sete anos tenho recebido lições extraordinárias dos
meus sobrinhos que têm oito e seis anos.
Basta
estar atento e disponível para aprender…
O
Luís, com seis anos, não gosta de se deitar e adormecer sem espreitar a lua. Se
for caso disso até pode solicitar a reabertura das persianas para concretizar o
seu objectivo, ensinando-me dessa forma que “adormecer” sobre o que quer que
seja sem antes saborear o seu lado mais luminoso, quer seja da noite ou da
própria vida, é um verdadeiro desperdício.
Até
parece irrelevante pois a lua, mais ou menos cheia consoante a fase do seu
ciclo, todas as noites brilha por entre as estrelas, mas é um facto que
adormecer depois da poesia de a “saborear” é mesmo outra coisa e quantas vezes,
um bom substituto para os indutores do sono.
O
João, com oito anos, desenvolveu uma técnica que combina no mesmo espaço de
tempo, a higiene oral e as orações da noite, e é vê-lo a esfregar os dentes ao
mesmo tempo que reza, acelerando dessa forma a ida para a cama e a
possibilidade de adormecer de mão dada com o irmão, o Luís, que já viu a lua e
está deitado na cama de baixo do beliche que partilham.
Mais
do que uma lição de optimização do tempo ou então uma demonstração da
complementaridade no que ao tratamento do corpo e da alma diz respeito,
chamou-me a atenção, esta possibilidade que tantas vezes desprezamos de
transformar as pequenas coisas em acções de louvor a Deus ou tão-só à própria
vida, o que no caso de um crente será uma e a mesma coisa.
Porque
mais do que debitar palavras decoradas há mais ou menos tempo na catequese (e
rezar uma Ave Maria ou um Padre Nosso enquanto esfregamos os dentes com Colgate
é algo que só o João consegue com os seus super-poderes), louva a Deus e à vida
quem vive intensamente, quem vive com brilho, com prazer, quem se cuida e cuida
dos outros, e sobretudo, quem em cada instante corre para o momento de dar a
mão ao seu “irmão” para juntos poderem mergulhar nos sonhos mais profundos e
saborosos.
Com
a bênção da lua ou do então do sol, que muito bons são os sonhos que nos
apanham acordados e em pleno dia.
É
tudo afinal, demasiado simples, e como vêem as lições estão aí à mão de semear.
As
lições… e a poesia que tem sempre lugar assegurado nas coisas mais simples da
vida.
E
poeta, eu?
Não.
Definitivamente, gosto apenas de saborear os detalhes, que nenhum é
desprezível quando se gosta de viver.
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