Aquela força de muito querer viver
O
semáforo obriga-me a parar na esquina da Politécnica com o Rato, instante
aproveitado por uma Romena com mais ouro na dentição do que o Banco de Portugal
nas suas reservas, para através de gestos, em vão me tentar vender o “Borda
D’Água”.
Recuso
a oferta até porque já sei à partida que o “clima” nas suas múltiplas vertentes
não vai estar bom, e ao abrir do sinal verde, mergulho na rua de Lisboa que
mais vezes calcorreei.
A
viver no Príncipe Real, ia à missa a São Mamede, tomava a bica na pastelaria
“Alsaciana”, comprava peúgas na “Poli”, frequentava a padaria com a mulher mais
antipática do universo e que só vendendo carcaças me obrigava a comer três para
compensar a minha fome de uma fatia do pão Alentejano a que eu estava acostumado,
comprava bolachas na mercearia em frente à Casa das Cortiças e acabava sempre a
partilhar memórias do Alentejo e da Beira Baixa com os seus proprietários, dava
dois dedos de conversa com o meu conterrâneo Sr. Sousa Meneses à esquina da
Imprensa Nacional onde também comprava morangos no verão em cartuxos de papel
pardo e castanhas assadas no Outono embrulhadas em folhas da lista telefónica
das Páginas Amarelas, ganhava o dia quando me cruzava com o Luís Miguel Cintra
de quem nunca perdia uma peça no teatro ali tão perto, via as montras dos
antiquários e, sobretudo, almoçava e jantava na Cantina da Faculdade de
Ciências que estava instalada no privilégio do Jardim Botânico, tendo sido por
ali, debaixo das copas de espécies vegetais raras, que, devido ao excesso de
consumo, eu passei a “odiar” solha frita.
Cada
local, cada esquina, cada porta, e até cada rosto daqueles que ainda reconheço,
encerra hoje memórias dos meus anos oitenta, memórias que vou desfiando ao
ritmo deste pára e arranca definido pelos peões no cruzar das passadeiras.
Do
meio deste meu viajar como antes entre o Rato e o Príncipe Real, fácil é
recordar-me também das preocupações de então e que invariavelmente comportavam
a Química Orgânica, a Farmácia Galénica, a Botânica Farmacêutica, a Análise
Química ou a Farmacognosia, porque qualquer descuido nos meses de Fevereiro e
Julho, os tais que sendo de exames, obrigavam a uma vida monástica e de
escravatura às mãos da “solha frita”, poderia “matar” a bolsa da Gulbenkian e
complicar um pouco as contas familiares. Para além de naturalmente ser um
beliscão na auto-estima que sempre se deseja em alta.
Vistas
agora, assim de longe e passados quase trinta anos, estas preocupações que
antes me tiravam o sono, fazem-me sorrir quando chego à esquina do jardim e dou
de caras com o quiosque onde comprava “A Bola” às quintas-feiras depois de uma
vitória do meu Benfica nos jogos europeus da véspera, e onde nos dias em que
regressava de um exame sempre comprava o vespertino “A Capital” para me entreter
à noite a fazer as palavras cruzadas temáticas ao som do “Oceano Pacífico” que
chegou à antena quase ao mesmo tempo em que eu cheguei a Lisboa.
O
tempo tem quase sempre esse condão de rotular de patéticas as preocupações que
um dia achámos que seriam capazes de nos derrotar, ou pelo menos beliscar a
nossa paz, num processo em que as memórias menos positivas vão vendo emergir
todas as claramente positivas, que são sempre as que importam.
À
excepção da solha frita, claro.
Mas
o tempo não é algo abstracto e é tão só o que fizermos dele, colhendo o maior
benefício quando perante uma adversidade a enfrentamos de um jeito que por
palavras pode ser algo como:
-
Anda cá “filha” que tu vais ver com quem te meteste. O último a rir serei eu.
E
um dia rimo-nos da desforra.
E
uma rua de Lisboa carregada de memórias é um filme de décadas das nossas vidas
que tem sempre a festa de um final… de uma chegada feliz.
Abordo
então a D. Pedro V, São Pedro de Alcântara e depois a Rua da Misericórdia,
alimentando-me dessa esperança e aplicando-a hoje às preocupações de alguns
amigos que por ora enfrentam alguns “desafios”, daqueles muito aborrecidos
porque mexem com a saúde.
À
esquina da Misericórdia com o Camões quando me preparo para estacionar e
espreito ao longe o Tejo e o pórtico da Lisnave, há uma Romena sem ouro no
sorriso que tenta vender-me o “Borda D’Água”.
Recuso
mais uma vez mas por uma razão nos antípodas da esquina do Rato.
O
clima vai afinal estar bom.
Impõe-nos
a vontade e a força de muito, e muito bem, querer viver.
E sorrio para o Camões piscando o olho ao Chiado… que o contrário
poderia ser interpretado como gozo pelo poeta de “Os Lusíadas”.
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