O intenso e eterno sabor doce que têm os dias de todos os sonhos
Nas
muitas vezes que as obrigações profissionais me levam ao Hospital de Santa
Maria, não resisto nunca a olhar para a Faculdade onde entre 1984 e 1989 me fiz
farmacêutico.
O
“desenvolvimento” implantou betão no espaço que então era ocupado pelas árvores
de generosas copas que foram nossas cúmplices nesse tempo em que o microondas
do bar de Medicina Dentária, por ser o único na região, era uma atracção que
motivava verdadeiras peregrinações em busca de um folhado aquecido; o Professor
Nascimento lançou uma campanha para que cada um de nós adoptasse um buraco do
asfalto e assim melhor pudéssemos circular entre o Anfiteatro, o “Supositório”,
o “Galinheiro” e o “Castelinho”; as senhoras da biblioteca eram insuportáveis
com o seu “meninas pouco barulho”; o Sr. Samju era o rei das fotocópias; fazíamos
batons nas mesmas formas metálicas que serviam para fazer supositórios; ir ao
ISCTE era o Top da Modernidade pela possibilidade de nos cruzarmos com o Miguel
Esteves Cardoso; o almoço decidia-se entre a Cantina Nova e a Velha, com esta
última a ser mais atractiva pela possibilidade de uma refeição macrobiótica; a
Teresa Salgueiro já afinava a voz para cantar uma Lisboa moderna que nós
encontrávamos à noite passeando nas vielas até aqui quase proibidas do Bairro
Alto; o Metro só ia até Entrecampos e nós conversávamos muito enquanto descíamos
ou subíamos a Avenida das Forças Armadas, ousando parar por vezes para um café
com natas na geladaria Pindô…
E
um tempo em que saboreámos desse prazer imenso e doce que tem sempre a partilha
dos nossos maiores e melhores sonhos.
A
liberdade não tinha chegado há muito, a “Europa” estava a chegar, e tudo
parecia rimar com essa vontade férrea que não via limites no impulso de mudar o
mundo e construir algo de magnífico sobre a herança brilhante que os nossos
pais, os reais inventores da liberdade, nos passavam diariamente.
Sentíamos
força para acreditar que por nós nada ficaria igual e tudo ficaria
infinitamente melhor.
Até
porque havia essa amizade grande que nos ligava, que a todos tornava mais fortes
e que a todos acolhia num espaço de família porque feito de intensos afectos.
Passaram-se
décadas sobre esses anos que a vida nos vai mostrando que foram dos melhores
das nossas vidas, vamos aqui e ali encontrando esses colegas que as
cumplicidades fizeram amigos e vamo-nos certificando nesses encontros do ponto
em que vai a tarefa de “mudar o mundo”.
Reencontrei
a Cristina há algum tempo quando as nossas duas empresas nos envolveram num
projecto comum. Fizemos uma festa pela alegria de nos voltarmos a ver e
sobretudo por nos certificarmos de que a “nossa energia genética” continuava
activa neste cumprir dos dias e torná-los intensamente felizes.
Mostrou-me
orgulhosa a foto dos seus quatro filhos rapazes e de como lhes estava a passar essa
herança e esse gosto pelos sonhos que por certo perdurariam no tempo.
E
passava-lhes também a garra e a força pela forma como lutava intensamente contra
um problema de saúde que poderia ser grave e que já estava presente e algo visível,
talvez em tudo, excepto nesse sorriso que se exprime pelo olhar muito mais do
que pelos lábios.
Soube
hoje de manhã que a Cristina partiu ontem exactamente no dia em que cumpria o
seu 47º aniversário, a minha idade, a nossa idade.
O
seu sorriso não morrerá jamais e brilhará para mim por entre as memórias dos
nossos sonhos quando eu passar pela Cidade Universitária e continuar a ver as
árvores das sombras cúmplices desses anos em que ousámos ser jovens diferentes.
Continuará
viva sobretudo na vida dos seus quatro “rapazes” que ainda há pouco tempo no
Facebook designou como os seus braços direitos e esquerdos, e, digo eu, quem
diz braços diz um enorme coração.
E
brilhará com a intensidade que no céu sempre têm as estrelas mais importantes.
Nós
continuaremos por cá e por sobre a saudade, a construir os dias dos sonhos e do
querer, sabendo que um dia iremos todos brilhar juntos, nesse momento em que
nos reencontrarmos para retomar a conversa e o riso que por agora só ficam
momentaneamente suspensos porque Deus insiste sempre em chamar para junto de si
os que são grandes, os que são verdadeiramente maiores.
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