O voo das bruxas por sobre a morte dos Santos
Passar
pelo Chiado ao fim da tarde de um dia que se anuncia de bruxas e encontrar a
Simone de Oliveira na FNAC a apresentar a sua biografia, é claramente mergulhar
num acto de exorcismo ou numa queimada ao jeito de Trás-os-Montes, no esvaziar
dessa autêntica bruxaria que é o cinzentismo fatalista e sebastianista que
parece estar agarrado ao nosso ADN.
O
tom da conversa é tão “colorido” e descomprometido com essa formal mistura de
preto e branco que, embalado por ele e durante alguns minutos, eu acredito que
na plateia até está um travesti. Só mais tarde me apercebo que não. Era a Jô
Caneças.
Há
bruxas no Chiado e por toda a cidade, e há crianças toda a noite a bater à
porta no desassossego de uma pergunta:
-
Doçura ou travessura?
A
cultura americana do Halloween matou
a lusa cultura do “Pão por Deus” e impôs as bruxas aos Santos e as gomas às
castanhas acompanhando na trivialidade o que a Fitch, a Standard&Poor´s, a
Moody’s e a Merkel, quarteto de bruxas não dançantes, nos fizeram aos “Santos”,
que ao fim de muitos anos se foram como feriado.
E
na relação com estas bruxas nem adianta a entrega de todas as doçuras que tenhamos
em casa (férias, subsídios, reformas, etc.) porque levamos na mesma com as
travessuras que são cada vez mais ardilosas e jeitosas.
Lá
se foi então definitivamente para o exclusivo território da memória aquelas
idas à Feira dos Santos em Borba quando aproveitávamos para comprar os “abafos”,
que pelo Alentejo é o nome dado à roupa que nos aquece no inverno, e acabávamos
sempre a tomar um chá em casa de uma tia da minha avó que tinha um nome que
jamais irei esquecer: Plautilia.
Mas
voltando à Simone e porque de Festivais da Canção também tenho repletas as
memórias, permitam-me que reconheça na “Desfolhada”, vencedora do festival em
1969 uma das melhores e maiores canções de sempre, muito mal tratada pela Europa
algures numa noite de primavera no Teatro Real de Madrid num cenário com
detalhes criativos de Salvador Dali.
A
interpretação da Simone é magnífica e o poema de Ary dos Santos que era
indecifrável no contexto da banalidade dos festivais do “La, la, la” é
igualmente magnífico e condensa nele, e em apenas três minutos, todo o
Portugal.
Após
esta “derrota” de Madrid, a Simone perde a voz e poderia ter-se rendido e
renunciado à sua carreira.
Não
o faz, e sem que a voz lhe doa regressa no Festival de 1973 arrebatando o
Prémio de Interpretação com uma canção que tem letra de Ary dos Santos e música
de Fernando Tordo. A canção é fantástica e chama-se “Apenas o meu povo”.
Transcrevo
aqui na íntegra toda a letra:
“Quem disse que
morreu a madrugada?
Quem disse que esta noite foi perdida?
Quem pôs na minha alma magoada
As palavras mais tristes que há na vida?
Quem me disse saudade em vez de amor?
Quem me disse tristeza em vez de esperança?
Quem me lançou a pedra do terror
Matando o cantador e a criança?
Quem fez da minha espera desespero?
Quem fez da minha sede temperança?
Quem me dando tudo quanto eu quero
Da minha tempestade fez bonança?
Quem amainou os ventos do meu corpo
E saciou o mar da minha fome?
Quem foi que me venceu depois de morta
E soletrou as letras do meu nome?
Quem foi foi quem fez serva sem servir?
Quem foi que me fez escrava sem querer?
Quem foi que disse que eu podia ir
Tão longe quanto nós podemos ser?
Apenas quem me viu calada e triste
E despertou em mim um mundo novo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue, apenas o meu povo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue, apenas o meu povo”
Quem disse que esta noite foi perdida?
Quem pôs na minha alma magoada
As palavras mais tristes que há na vida?
Quem me disse saudade em vez de amor?
Quem me disse tristeza em vez de esperança?
Quem me lançou a pedra do terror
Matando o cantador e a criança?
Quem fez da minha espera desespero?
Quem fez da minha sede temperança?
Quem me dando tudo quanto eu quero
Da minha tempestade fez bonança?
Quem amainou os ventos do meu corpo
E saciou o mar da minha fome?
Quem foi que me venceu depois de morta
E soletrou as letras do meu nome?
Quem foi foi quem fez serva sem servir?
Quem foi que me fez escrava sem querer?
Quem foi que disse que eu podia ir
Tão longe quanto nós podemos ser?
Apenas quem me viu calada e triste
E despertou em mim um mundo novo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue, apenas o meu povo
Apenas a esperança que resiste
Apenas o meu sangue, apenas o meu povo”
Faço-o
para homenagear a Simone, o Ary e sobretudo para que tenhamos a esperança de dias
novos e muito melhores.
Para
que saibamos resistir.
Acredito
que os meus sobrinhos ainda terão a hipótese de num dia 1 de Novembro, feriado
de Todos os Santos, se dirigirem a Borba para comprarem castanhas na feira
acabando depois a assá-las no fogareiro que já não terá as brasas
disponibilizadas pela vizinha Clotilde mas terá o calor de uma outra amizade fundamental
e inesquecível.
Para celebrar a morte das “bruxas” e a ressurreição de todos os santos.
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