A casa dos poetas é o coração de quem os sente
O
João não se esquece de nada, e quando ao princípio da noite vamos os dois em
direcção ao Castelo e à igreja de Nossa Senhora para a procissão do enterro do
Senhor, passando junto ao busto da Públia Hortênsia de Castro volta a um dos
temas do passeio da tarde:
-
Porque é que as mulheres não podiam estudar e falar em público como os homens?
Haja
alguém, mesmo com nove anos, que tenha interiorizado tão bem a igualdade de
género, a quem faça confusão a existência de um tempo, talvez não só passado,
de desigualdades.
Seguimos
os dois a falar da liberdade até ao sítio onde colocaram uma ombreira em
mármore que assinala o suposto local da casa onde nasceu Florbela Espanca, um
edifício na velha Rua de Angerino que foi destruído na intervenção dos anos
quarenta do Século XX quando foi rasgada a Avenida dos Duques de Bragança.
A
pergunta inevitável do João:
-
Como é que eles têm a certeza de que era aqui no passeio e não ali no meio da
estrada?
E
seguimos os dois a falar de poesia explicando-lhe eu que a casa dos poetas é o
coração de quem os sente nas palavras que nos deixam.
Pouco
importa onde nasceram...
Um
tema difícil mas apetecível numa noite quente de primavera em que se sente a
festa das laranjeiras em flor.
Entramos
no Castelo pela porta da Torre de Menagem e mostro ao João uma figueira que
nasceu com raízes entre as pedras da parede alta da torre.
-
Como é que podemos ir lá colher os frutos?
Eu
nunca tinha pensado nisso por entre a "poesia" de ver uma árvore a
inventar as suas próprias raízes; e em boa verdade também nunca vi figos a
espreitarem lá do cimo...
E
dali até à igreja fomos inventando uma história sobre a árvore.
-
Estás a ver... já temos uma história, o que significa que já colhemos um
"fruto" mesmo sem termos qualquer escada.
Depois...
A
vela acesa, a matraca, o penitente, a Maria Madalena, a descida da cruz, porque
é que mataram Jesus?
E
seguimos os dois de mão dada pisando a terra dos nossos avós. À nossa frente e
atrás caminhavam amigos da rua onde nasci num abraço doce que nunca nos faz
sentir sós... até o som da banda filarmónica era familiar.
Ao
sair do Castelo pelas Portas de Estremoz o João baixou-se para apanhar uma
pequena pedra branca que colocou no bolso.
-
Para que queres a pedra?
-
Para amanhã me lembrar que estivemos aqui e assim não me esquecer de nada.
Sorrio.
Eu
farei o mesmo, sem apanhar uma pedra mas escrevendo um texto para o Pomar, logo
que chegue a casa.
Há
lições nascidas de histórias e de instantes perfeitos que não se podem perder.
E
escrevi a pensar no aroma das laranjeiras em flor.
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