BONDADE
Na Vila Viçosa da minha infância os "serões da
morte" eram passados em casa. Desmanchava-se o mobiliário para abrir
espaço no centro das salas e dos quartos, e pediam-se cadeiras pela vizinhança
para depois serem colocadas ao redor do caixão que chegava sempre num carro de
mão que tinha uma roda de ferro que emitia um som estridente no seu contacto
com a calçada.
Os pais pediam-nos silêncio e nesse dia não
brincávamos na rua, quanto muito espreitávamos à janela e víamos o vaivém de
gente vestida de negro, intrigando-nos o que se passaria dentro dessas casas
que permaneciam com a porta aberta mesmo durante a noite.
De lá só nos era permitido sentir o murmúrio, as ladainhas
e o choro abafado das mulheres, que os homens permaneciam na soleira à conversa
e a fumarem intermináveis cigarros.
Depois vinha o padre com vestes roxas, soavam os
sinos, saía o funeral, íamos recolher as nossas cadeiras e tudo voltava ao
normal.
Voltávamos a brincar na rua.
Os meus pais tinham casado há pouco e eu nem sequer
tinha ainda nascido quando na nossa Rua de Três morreu um vizinho que deixava
viúva e ninguém mais.
No apoio à pobre mulher, no entra e sai promovido pela
amizade que unia a vizinhança, alguém se dá conta de que não há na casa desta pobre
mulher um lençol que possa cobrir o corpo jazente do marido.
Pergunta-se quem poderá colmatar esta falta, e a minha
mãe resolve então abrir a arca pintada de negro e decorada com pioneses dourados
gigantes que o meu avô lhe preparara para o enxoval, e oferece um dos lençóis
brancos que ela própria tinha bordado algures pelos serões que antecederam o
seu casamento.
Confessa a mãe que o fez num impulso de vontade, mas
com um certo receio pelo rótulo de "esbanjadora" e "exibicionista"
que lhe poderia ser atribuído. Temendo uma reprimenda, só semanas mais tarde
partilhou o facto com a minha Avó Francisca, sua mãe, uma santa alma que
obviamente lhe louvou o gesto.
Esta história tem vivido sempre no sigilo do nosso
restrito núcleo familiar e é evocada às vezes quando nos damos conta de que a
nossa casa cresceu, acrescentámos-lhe muitas camas e muitos lençóis; e a minha
mãe, sempre agradecida à vida, diz muitas vezes que esses muitos pedaços de pano
que chegaram são pétalas que floresceram desse outro que ela um dia semeou no
aconchego do coração de alguém.
Não sei se a minha mãe me perdoará por eu ter escrito
e partilhado aqui esta história, mas o tema "Bondade" proposto pela
minha amiga Margarida Borrega levou-me até ela e também à pessoa da minha mãe,
indiscutivelmente a minha mestra neste propósito de conseguirmos ser maiores e
melhores, de sermos “bons”.
E a bondade talvez não seja nada mais do que darmos de
vontade aquilo que tecemos e temos guardado nos “baús” dos nossos tesouros, sem
qualquer outra intenção que não seja afagar o "coração" de alguém.
A recompensa chegará sempre, mesmo que nunca pensemos
nela.
(“Um mês A GOSTO” / Dia 2 / Letra B / Tema proposto
por Margarida Borrega)
Uma bela narrativa
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