CRESCER
Na casa dos meus bisavós Inácia e Filipe, pais do meu
avô materno Joaquim, a escassez de recursos levou ao estabelecimento de uma
regra muito especial na hora de comer sardinhas: só passaria de metade da dita
para uma inteira, quem crescesse e conseguisse bater com a cabeça no pano da
pequena cortina colocada horizontalmente a decorar a chaminé.
Contava o avô que o critério motivava infinitas piadas
relativamente ao tio João, seu irmão mais velho mas com uma particularidade anatómica
que lhe era totalmente desfavorável neste "negócio": era anão.
O tio João vivia com a tia Maria, sua irmã, numa casa
de dois pisos na Rua de Santa Luzia, em Vila Viçosa, e tinha o ofício de
sapateiro.
Numa sala com porta para o quintal que tinha um
canteiro com um limoeiro que me oferecia os ramos para um balouço, as folhas
para a sombra mais fresca e uns limões sumarentos e enormes para as melhores
limonadas que alguma vez bebi, com os seus setenta anos arranjava o calçado de
muitos clientes que passavam por lá para levarem consigo os sapatos muito
engraxados e cheirosos.
Nesta sala havia um pássaro chamado Sarico, que
cantava muito durante o dia e que imitava o som do pequeno martelo com que o
tio João pregava os sapatos.
Enquanto a tia Maria se entretinha com a lida da casa,
ficávamos por ali os três durante horas infinitas; o tio, o pássaro, e eu a
construir cidades com as pequenas pedras que apanhava no quintal.
O sítio onde melhor se brinca é à sombra de quem nos
ama.
E quem brinca a construir cidades treina-se a desenhar
caminhos e aprende a crescer
Um dia o tio João fez-me umas sandálias, as únicas que
tive desenhadas e construídas de propósito para mim, e que por certo usei nos
passeios que dávamos os dois até à Mata nesse inédito privilégio da minha mão
protegida pelas mãos do adulto que tinha o coração mais próximo do meu, e a
face com os lábios de onde saíam histórias bonitas que me faziam sonhar e crescer.
Sim... crescer pelo amor que é o único cimento capaz
de moldar os Homens, aprendendo que há muitos gigantes em corpos de anões.
O inverso também existirá mas essa é a gente que a
memória não guarda e de quem não merece a pena falar.
Um dia o tio João adoeceu e uma das últimas palavras
que disse antes de partir no Outono de 1977 foi Quim.
Eu já não cheguei a tempo de lhe dar um beijo de “até
já” mas prometi a mim mesmo que por ele continuaria a construir caminhos e me
faria crescer até à sua altura de gigante.
E por aí sigo com fé e com a esperança de me
aproximar...
Pelo amor, porque crescer jamais será coisa de centímetros;
e aquilo que é verdadeiramente grande é impossível de medir.
(“Um mês A GOSTO” / Dia 3 / Letra C / Tema proposto
por Celso dos Reis Lopes)
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