TRAVESSEIRO
Na cama dos nossos pais existia um travesseiro a toda
a largura da cabeceira, em cima do qual se colocavam depois duas pequenas
almofadas individuais que davam uma identidade a cada um dos lados do leito; se
bem que a identidade que se impunha era essa indiscutível cumplicidade
denunciada por essa muito comprida estrutura cheia de esponja muito colorida e esquartejada
em pedaços.
E quando pensávamos que um dia iriamos ser felizes ao
lado de alguém, sempre acreditávamos que sim, a vida dar-nos-ia a pessoa ideal
do outro lado dessa longuíssima almofada que por vezes ajudávamos a nossa mãe a
enfronhar na hora de fazer a cama.
Enfronhar, uma tarefa que não era objectivamente
fácil.
Também existiam travesseiros nas camas dos nossos avós
e dos nossos tios, e nós também os conhecíamos bem dessas noites que eram especiais
porque ficávamos em suas casas para que os nossos pais pudessem ir a alguma
festa ou a algum baile, e pudessem regressar depois mais tarde a casa.
Tal como os das camas dos nossos pais, para onde
saltávamos a voar nos domingos de manhã, esses travesseiros também eram cúmplices
das histórias que nos eram contadas por ali num objectivo que cruzava a distracção
com o embalo para mais uns minutos de sono.
E quando já ficávamos donos e senhores dessas camas,
então o travesseiro moldava-se por cima da nossa cabeça para sermos um genérico
da esfinge, e, garanto-vos eu que um travesseiro bem colocado à esquina de uma
cama de ferro forjado resulta num magnífico fosso de orquestra no palco da
Eurovisão para que possamos cantar com garra o “Aprés Toi” da Vicky Leandros.
Por tudo o que partilho convosco, é por serem polvilhados
de açúcar que os bolos da Periquita, em Sintra, têm toda a legitimidade para se
chamarem “Travesseiros”, muito mais até do que pela forma enrolada e comprida da
sua massa folhada estaladiça, perfeita ainda morna e que me faz aguentar horas
na fila para os degustar.
O açúcar das doces memórias.
Quem me propôs este tema foi o Carlos Trindade, o tal
amigo que um dia me ofereceu um caderno vermelho que eu uso para tirar notas e
escrever poemas. O Carlos é uma pessoa extraordinária e desde logo ser seu
amigo é um privilégio, mas há mais, é que sentados à mesa do café, acabamos sempre
a geminar informalmente Vila Viçosa e Beja através das nossas histórias tão
iguais.
E eu não tenho a certeza, mas quase que juro que um
dia falámos dos travesseiros nas camas dos nossos pais e destas manhãs
perfeitas de domingo, quando pela casa já existia um intenso cheiro a “brinhol”.
(“Um mês A GOSTO” / Dia 25 / Letra T / Tema proposto
por Carlos Trindade)
Comentários
Enviar um comentário