QUADRO
Sobre o quadro negro muito salpicado pelo pó do giz, o
professor Lima Martins pendurou uma paisagem que retirou há pouco e ao acaso de uma lata, um paralelepípedo gigante que está sempre encostado à parede oposta à das
três enormes janelas.
Vejo um riacho, uma árvore, ao longe, uma montanha… e
começo a escrever a “Redacção”.
Estou na quarta classe e escrevo como quem põe
palavras naquilo que sonha.
É um sábado de manhã e o Rijksmuseum está cheio de
gente que quer despachar-se para ir ao Museu van Gogh, ou então gente cansada
porque já veio de lá. Como no banco de uma movimentada estação de metro,
sento-me e tenho a “Ronda da noite” só para mim, o privilégio do melhor jogo de
sombras que conheço.
E van Gogh…
Também o espreito em Amesterdão mas prefiro vê-lo em
Paris no Museu de Orsay. “A noite estrelada sobre o Ródano”, e tantos reflexos
e palavras se soltam por entre o aroma a café que tomo depois no bar por detrás
do enorme relógio da velha gare nas margens do Sena.
Aponto as notas num caderno que comprei ainda agora na
loja do museu.
“Eu e a aldeia” parece um título estranho para Nova
Iorque; mas é milagre de Chagall numa das paredes do MoMa. “Eu e a aldeia”, e
um pouco de pressa porque o Juan Blas espera por mim ali perto no Instituto
Cervantes para irmos almoçar juntos.
Vejo o El Greco a olhar para mim e para o João Paulo em
“O enterro do Conde de Orgaz”, na igreja de São Tomé, em Toledo; e também escuto
a guerra nos gritos da “Guernica”, de Pablo Picasso, nas paredes de um antigo
hospital de Madrid, o Centro Reina Sofia, ali tão demasiado próximo das dores
de Março na Estação de Atocha.
E confesso…
Às vezes quando estou pelo Porto e tenho de almoçar
próximo do Hospital de Santo António, faço-o na cafetaria do Museu Soares dos
Reis, não sem antes ir matar saudades das “Casas brancas de Capri”, do meu conterrâneo
Henrique Pousão.
Na redacção que entreguei há pouco ao professor Lima
Martins há um homem sentado à beira do riacho e na sombra da árvore, um homem
de barbas que escreve as histórias que vai colhendo das sombras que as nuvens e
o sol vão oferecendo à montanha que está à sua frente.
Sou eu e o mundo que se me revela, a vida, os meus
quadros preferidos e todas as “gravuras” que os mestres e os dias me vão
colocando sobre o negro…
E eu desenho sobre eles as minhas palavras… sempre
como quem sonha.
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