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A mostrar mensagens de abril, 2021

O estatuto e a essência

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Pelo final dos anos setenta do século passado, em Vila Viçosa, quando eu fazia da Livraria Escolar, a minha segunda casa, um casal de namorados oriundos da burguesia que então emergia da explosão do comércio do mármore, cumpria o ritual de todos os meses ir adquirir um exemplar da coleção de obras de Eça de Queirós, que a Editora “Livros do Brasil” lançara numa encadernação elegante em tons de encarnado. Deixavam sempre a promessa: - Quando acabarmos estes, vamos começar com os verdes. Sendo que se referiam à coleção das obras do grande Fernando Namora. Tenho dúvidas se estes dois conjuntos de obras primas da nossa literatura persistem nas estantes destas almas, num arranjo muito republicano, no que às suas cores diz respeito, duvidando eu que o Jacinto, entre Paris e Tormes, assim como o João da Ega, entre o Tavares e o Rossio, tenham alguma vez pisado os tapetes de Arraiolos daquela sala Calipolense. A mesma dúvida me assiste relativamente ao Dr. Namora, algures entre Pavia

À escala microscópica

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Há dias em que as árvores me beijam por muito mais do que apenas o olhar, deixando sobre o carro um ramo pequeno da sua imensa copa, e centenária história. Poupando-o ao vento que a velocidade sempre ateia, apanho-o e trago-o comigo, sentindo-lhe os versos numa conversa entre iguais, que jamais terá fim. Eu sou irmão dos detalhes ínfimos de todas estas árvores da minha terra, e quanto mais mundo me é dado conhecer, mais privilegiado me sinto nesta honra, à escala microscópica, de poder chegar até onde a Terra floresce e se renova. Há quem aposte, e faça o contrário, fechando-se num espaço pequeno, e chamando sobre si o foco mais intenso que existir no mercado. Enormemente importante, é um facto que, então, ver-se-á grande, projetado sobre a parede branca. Será um gigante, mas de apenas sombra. No requiem da verdade, será uma valiosa ilustração, mas da carnavalesca legenda que não lhe pertence. Eu gosto da viagem que me dilui no espaço todo do universo, e me transforma nesta

“A única crítica é a gargalhada”

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Há palavras e gestos que ficam a dever a verdade ao coração, traindo-a de modo mais ou menos declarado, por entre a construção de hipérboles com tanto de obsceno quanto de ridículo. Se um sinal da cruz feito com a mão direita fosse garantia de trazer Deus, por dentro, no peito, ou se o discurso da autoproclamada honestidade, com palavras caras, de mil Euros, fosse garantia da prática dos bons princípios… Da “velha moral” permanece, arrastado pelo corso das virtudes, muito mais do que dos vícios privados, o binómio dos bons e dos maus, sendo que, invariavelmente, o herói é o próprio, envolto em todas as suas capas, rodeado pela multidão das bestas incapazes de lhe reconhecerem o seu enorme valor. Não existe meio termo, e nestas narrativas, aonde a modéstia, juntamente com a verdade, definha na solidão de um conjunto vazio, o juízo alheio e qualquer evidência são desprovidos de valor, perante a solenidade de um humano decreto, de uma sentença, invariavelmente subjetiva, ou até de uma abe

Folares e chupa-chupas...

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Sempre que era sexta-feira santa, e a procissão do enterro do Senhor passava à nossa porta, existia alguém que não se dispensava de comentar: - A Maria Inácia atrasou-se a cozer os bolos fintos. Era totalmente verdade, e tudo porque o forno era demasiado pequeno para a quantidade de massa, e a profusão de folares que eram fabricados aqui em casa, tendo por destino os avós, os tios, os tios-avós, os primos… Não se importava com isso o Senhor, que, desta forma, ao passar por aqui, levava sobreposto ao formal incenso, os aromas dos nossos perfeitos instantes de amor. Tudo começara na véspera, com a mãe a atar um lenço à cabeça para amassar os quilos de farinha, acariciados com banha, chá de erva doce, açúcar… a avó Dade também não resistia a pôr as mãos, o seu saber, e, sobretudo, a sua fé, porque a massa acabava benzida por ela, com uma cruz desenhada pela sua mão direita. A festa continuava noite fora, com os bolos a fintarem (ou a levedarem, se quiserem uma terminologia menos alentejan