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A mostrar mensagens de março, 2018

As nossas novas páscoas

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Nos quarenta e cinco segundos que o micro-ondas demora a aquecer a caneca do leite, cabem, completas, três Ave Marias. Sim, aprendi-o nesta quaresma, vivida tão intensamente com o Rui e com o Álvaro, porque as ruas de Jerusalém que ofereceram caminho aos passos de Cristo, têm hoje, as marcas e as cores dos ladrilhos das nossas casas. A radiação “amiga”, aquela que ao fim de 33 sessões será suposto reduzir as probabilidades de reaparecimento do tumor extraído, começou a atuar, de mansinho, por alturas, precisamente, do carnaval, passou por um pico de intensidade a meio do percurso, apagando-se depois, de seguida e aos poucos, até à última sessão: a que decorreu na passada segunda-feira. Por mais que acreditemos que a via-sacra termina sempre no domingo de ressurreição, os espinhos, as pedras e os chicotes, agora na forma de náuseas, vómitos, astenia, sonolência… doem muito, marcando o corpo, e sobretudo, a esperança, criando a tentação de desistir, mesmo para quem muito esper

As paredes de cal são como os nossos dias

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Por mais que alguém possa assumir e afirmar o contrário, os dias nascem para nós sermos felizes. Na semana que passou celebrámos o pai, a primavera, a poesia, a árvore, e a água, lembrando-nos assim, estes “post-its” colocados à superfície do tempo, que os dias nascem para serem compartidos com aqueles de quem mais gostamos e quem nos acrescentam vida, não devendo existir pudor ou medo de deixarmos para trás as demais criaturas, marcos parados e petrificados das estradas que já fomos. Lembram-nos também que a água limpa todas as mágoas, abraçando-a ou olhando-a, apenas, de perto ou de longe, na corrente de um rio, de uma fonte, ou então, na imensidão revolta ou tranquila que tem o mar. Para além disso, por mais rigoroso e dificil que seja o inverno, as árvores são iguais a nós no instante em que se cobrem de flores e folhas, reinventando-se sempre que chega a primavera. E a poesia? Anda por aí, por todo o lado e todos os dias, embora costumem chamar poetas àqueles que

O meu pai...

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O meu pai inventou um assobio só para me chamar, e chamar o meu irmão. Entre milhões de outros sons, que até podem ser parecidos, nós conseguimos saber quando ele nos quer por perto, mesmo sem precisar de dizer os nossos nomes. O meu pai é adepto e sócio do Sporting, e apesar de nos levar cachecóis e gorros verdes e brancos, de cada vez que vinha a Alvalade ver um jogo, não conseguiu derrotar o Eusébio, evitando que nos tornássemos ferrenhos defensores, e sócios do Benfica. Vingou-se mais tarde, não se convertendo nunca às piadas do Herman José, e mantendo-se fiel ao Cantiflas: - Como é que podem achar graça aquele “esparvêrado”. O meu pai só frequentou a escola até à quarta classe, mas foi ele quem me ensinou a fazer contas. Eu faço cócegas ao meu pai, quando o apanho desprevenido, e ele, impávido e sereno, diz sempre: - “Nãaa”, podes desistir. Mas se fosse eu a fazer-te a ti... Gosto de tomar o pequeno-almoço com o meu pai, os dois de pijama, quando estou em Vila Viçosa. No

As ruas do trovador

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A mãe é costureira, e nos anos da minha infância, quando morávamos na rua de Três, em Vila Viçosa, tinha com ela aprendizes, raparigas nossas conterrâneas dispostas a seguir-lhe os passos na sua arte. A banda sonora dessas tardes longas em que eu brincava nas escadas de pedra que davam acesso à varanda, era a conversa com que elas acompanhavam os chuleios, os alinhavos, o casear e o cerzir, quase sempre, também, na companhia de uma das avós ou de alguma tia, que chegavam para dar uma ajuda em dias de mais trabalho. Sentadas nas cadeiras baixas com assento de buinho, as suas palavras saltavam como numa dança de roda, oferecendo um coro inspirado à ópera cujo libreto eu ia inventando, como podia, entre casinhas de papel ou carros miniatura, numa cidade só minha. Às vezes parava para tomar-lhes o sentido de para além do som, e por todas essas palavras que me era permitido escutar, muito cedo aprendi a desmontar a ideia de que esta era a assembleia informal da “gente menor”, esperand

Se o “Ali Baba” tivesse derrotado o “Playback”…

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“A desfolhada” do Pedro era genial e até incluía gestos bruscos de Simone sobre o canudo que fazia de microfone, mas o meu “Sobe, sobe balão sobe” arrasou a audiência e o júri “nacional(mente)” distribuído pelo celeiro, para que a distância e os caixotes pudessem oferecer-nos à voz, as intermitências das chamadas telefónicas dos anos setenta. Não me recordo bem, mas talvez o João Paulo fosse Braga, escondido entre pilhas de blusas de malha, o Manuel, Angra do Heroísmo, atrás dos capotes castanhos, e o Paulo Geadas, quiçá Beja, debaixo de uma pilha de cobertores. Nesta polivalência de funções e plágio assumidíssimo, existia também o privilégio de alguém ser Eládio Clímaco, para apresentar as canções e recolher os votos no quadro improvisado numa folha de cartolina. O prémio não incluía viagem até uma cidade algures na Europa, mas passava, certamente, por uma sessão de “jogo do mata” na travessa do Belhuca, o que era quase a mesma coisa que brilhar no palco da Eurovisão. Era s