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A mostrar mensagens de junho, 2015

Diário de bordo

Os dois cálices de Porto desentorpecem e soltam as confidências, mas com muito pouco de novidade nas palavras, habituados que estamos os dois à linguagem dos olhares e dos gestos, os infalíveis fiéis à verdade incapazes de respeitarem quaisquer silêncios que lhes sejam sugeridos. Eu amo-te, e o meu braço que te envolve inquieto desde o Chiado e a mão que te acaricia a cada minuto às vezes incompleto, não se têm cansado de o dizer. Porque o amor que semeias em mim transborda, suplanta todos os poros e todas as expressões; sinto-o aqui nesta mesa onde estamos frente-a-frente à sombra de uma casa de Lisboa. E entre nós, o néctar fresco da cor do ouro vai-se sumindo aos poucos nos tragos que enfeitam as palavras que falam de nós. Vejo-te perfeito e faço-te uma foto. Como se a minha memória pudesse alguma vez trair a eternidade guardada no teu olhar que abençoa este instante? Depois voltamos a caminhar... Não tardamos a sentar o nosso abraço à proa da cidade, olhando o rio e

O velho, o anjo e o paraíso

Diz-se na minha terra que sempre que um anjo parte para o Céu escolhe um velho para lhe ensinar o caminho e seguirem juntos. A Tia Maria, irmã do meu avô Joaquim, foi uma das mulheres que mais me marcou a vida, e de forma muito positiva. Companheiros nos serões de muitos anos quando eu ia dormir a sua casa para lhe fazer companhia, acabávamos quase sempre por abdicar da televisão para estarmos os dois à conversa. Foi com ela que aprendi a contar histórias e foi ela quem me ensinou a gostar de Lisboa, a cidade onde tinha vivido muitos anos e que era palco central da "Crónica d'El Rei D. João I", do Fernão Lopes, que líamos em conjunto. Também foi ela quem me provou que o bom é péssimo quando temos condições para ser excelentes, e que sermos exigentes connosco próprios é a raiz de uma árvore que dará bons frutos. A Tia Maria que tinha nascido ainda nos tempos da monarquia partiu faz hoje precisamente 20 anos no dia a seguir à partida de um anjo que o Céu convocara i

Enquanto as hortênsias da Praça se espreguiçavam de cor ao sol do meio dia

O sol em brasa, quase a pino; não tardará já o instante em que no campanário soem as badaladas do meio dia. O verão pede incessante a sombra de uma laranjeira, há vasos de hortênsias ao redor da Fonte da Praça, as mesas do Restauração fazem-se tronos de um império de riso e palavras à solta. Vila Viçosa... Há recantos e instantes que serão sempre a nossa casa; uma eterna casa, mesmo que o tempo a vá redesenhando, colocando novas varandas, alterando as portas e as janelas, oferecendo-lhe inéditas dimensões... O tempo e tudo o que dele fomos fazendo nos dias intensos de quem vive e sorve a vida até ao mais ínfimo detalhe. Estamos sentados, somos quatro, amigos daqueles de sempre e no parapeito de um tempo, de uma nova varanda de onde podemos ver-nos e escutar-nos por ali a brincar nas manhãs de verão iguais a esta. Foi há muito pouco mas já passaram bem mais de trinta anos; eu já não vou virar para a Rua de Três, a Zinha não vai subir a Praça até à Rua dos Fidalgos, a porta da casa d

Milhares de mundos numa noite de insónia

Cabem milhares de mundos numa noite de insónia daquelas em que um mosquito nos assalta o ouvido com o seu voo e em que nos auto-infringimos um estalo que o visa liquidar, um gesto que à posteriori percebemos ter chegado atrasado porque o zumbido cresceu de intensidade... quiçá pela revolta... O calor e a incessante busca do lado fresco da cama que o nosso corpo esmaga em segundos... A esquerda e a direita por entre a fé de que a próxima viragem de corpo é que me vai trazer o sono... O aliviar da bexiga e o crer por momentos que esse órgão é responsável pela ausência de sono... Um copo de leite frio... O caderno vermelho... Há poemas acesos no ar tingido pelo aroma das rosas que o teu olhar beijou, e as palavras tantas que por eles me acodem à lembrança sinto-as tão minhas de verdade. O sol intenso que a cal reflecte e me envolve no dia quente do sul tomou o jeito dos teus braços que me conhecem de cor, e oferece-me aquele doce desassossego que o meu querer pede por entre um vazio cha

À porta da Sala 7

Na minha Escola Secundária em Vila Viçosa, a Sala 7 tinha acesso por uma escada que descia do corredor do primeiro andar, mas tinha também uma porta de madeira pintada de verde que dava acesso directo ao pátio na zona do poço onde muitas vezes nos sentávamos à conversa durante os intervalos. Ali mesmo ao lado, o Paço Ducal e a torre da capela que dava as horas por sobre o Jardim do Bosque, lembravam-nos sempre que naquele espaço não existia pequeníssima pedra que não contasse uma história da História de todos nós. E pela ousadia dos 15 anos e instigados pela liberdade dos últimos anos da década de setenta, jurámos muitas vezes reescrever a História tornando-a nossa pela expressão da mais acérrima vontade. E sonhámos tanto entre os limoeiros reinventando-nos em tudo e até nos gestos e nos vocábulos. No último domingo fui visitar o Paço Ducal e já de saída dei por mim à porta da Sala 7. Activado o espelho da memória consegui reconhecer-me em tudo. Na ousadia, na liberdade, na

Os apaixonados escrevem cartas de amor nos instantes do entardecer

Meu amor Parado à esquina do entardecer de um dia qualquer, que muito pouco importa qual por ser eterno o sentir que as palavras ditam, escrevo-te feliz uma carta de amor. Talvez resulte tão patética quanto todas as missivas dos enamorados, barroca no excessivo floreado a ouro de quem se sente num trono imenso; quiçá fique até a dever pouco à criatividade. Mas hoje... quando ao longe vejo o céu ateado pelo sol em cor de fogo, o mesmo sol que se vai apagando aos poucos num oceano que perde o azul em absoluta rendição à noite; eu senti um impulso e escrevo-te antes que cheguem as estrelas e eu me distraia… a pensar em ti. Preciso dizer-te que te amo tanto que jamais morrerei de amor por ti, muito pelo contrário, quero deixar-me estar sempre aqui a viver de amor por ti, eternamente. Não te faço juras de amor pois tal pressupunha a hipótese de um não amar-te, que definitivamente não existe. Também nunca te direi que me perdi de amor por ti porque realmente me encontrei no amo

A saudade parece sossegar a cada palavra que te escrevo

A saudade parece sossegar a cada palavra que te escrevo, palavras colhidas dos instantes que o pensamento vai arquitectando e se sobrepõem ao silêncio aonde me sento. Instantes que te trazem definitivamente ao meu mundo e à minha história fazendo com que todos os meus silêncios guardem afinal uma face escondida, mas doce e perfeita, onde tu estás. Onde tu sorris como mais ninguém. Não há horário, acesso, escada, transporte, túnel… o pensamento faz-te eterno em mim, na verdade e no mundo que a minha vontade desenhou. Hoje vi-te sentado comigo numa varanda em frente ao mar, vendo ao longe o azul mas sentindo bem perto a brisa que traz sempre o sal até nós. Líamos os dois fazendo uma pausa para mudar de página ou então para um beijo breve… com o olhar. Sobre a mesa uma limonada ainda fresca e uma jarra de flores garridas mas de nomes indecifráveis colhidas num recente passeio ao campo. Não fora o chilrear dos pássaros, o vento muito suave a agitar a folhagem e os parágrafos

A revolta dos joanetes

Chegou finalmente o verão, e por estes dias quentes e longos, a moda de 2015 não se fez esperar e chegou intensa, radiosa e... rasteira. De um momento para o outro reparei que as minhas colegas que antes tinham crescido 10 a 15cm (na altura) se devolviam agora ao seu tamanho original; o de sempre, na ressurreição do ditado que as aproxima da sardinha e da petinga (“a mulher e a sardinha quer-se pequenina”). Intrigado, fui à procura dos sapatos compensados ao estilo Drag Queen em noite de “Lugar às Novas” no Finalmente Club, e já não os encontrei. No lugar destas plataformas andantes patrocinadoras do “ doping da altura” que aproximou as Portuguesas às Suecas, encontrei umas rasteiras sandálias parecidas com as dos penitentes das procissões da Semana Santa de Sevilha, o que num grupo mais ou menos considerável de mulheres fica a parecer uma concentração de figurantes para uma reinvenção do Ben Hur . Com saias compridas, também temos a sensação de que a Dulce Pontes sofreu um

Procurem-me sempre entre as palavras que escrevo…

Eu sou todas as palavras que escrevo, muito mais do que algo que de mim se possa ver. Porque se é verdade que o poeta é um fingidor e realmente finge, também é verdade que nunca o faz na alma de onde bebe as palavras e o seu sentido, fá-lo por entre os biombos que os dias tantas vezes lhe impõem. Por isso eu sou todo o amor que canto... O amor por ti e só por ti; tu, o único que entendes o sentido de cada letra e o único que pode reconhecer-lhe a verdade. Não há disfarces e camuflagens para aquilo que se sente e sobre o qual fala o pensamento; e é a essência que nos define, muito mais do que a forma. Porque também há beijos que são traições, e até os ateus sabem apontar os braços para o Céu. Por isso as minhas mãos são de quem lhes semeou desejo infinito, muito mais do que de quem lhe possa entrelaçar os dedos nos instantes que o mundo vê. Por isso o meu abraço é infinitamente teu mesmo que às vezes eu chore de saudade estendendo os braços aparentemente vazios, ao silênci

Notas à solta num caderno sem cor

O Primeiro-ministro diz que é um mito urbano, o seu suposto convite à emigração. As mensagens não necessitam ser passadas pelos próprios e o desemprego é tão eficaz a mandar estes recados. A gente do PS está em choque com o facto das sondagens lhes atribuírem votos em número idêntico ao da coligação do governo. Se estivessem atentos às estatísticas que revelam que em Portugal apenas 1% da população sofre de demência talvez não se espantassem tanto. No passado 10 de Junho, o Presidente da República condecorou o costureiro da mulher. Aguardo com expectativa o dia em que a minha mãe receberá condecoração pois sendo modista de profissão e estando habituada a fazer saias para mesas redondas de diâmetros avantajados... O líder do PS diz que nenhum dos seus ministros permanecerá em funções se estiver envolvido em suspeitas de corrupção. Pois... mas gostaríamos que ele dissesse que sobre nenhum dos seus ministros recairiam alguma vez suspeitas de corrupção. Que grande confiança no grupo de

Uma tenda e a nossa casa

No cimo do monte de onde se avistam os campanários, onde os pássaros quase nos beijam no voo das suas asas, e de onde à noite os cachos de luz revelam a geografia que nos rodeia aquém e para lá do Guadiana; construímos uma tenda em lugar seguro. Sobre o chão da História, por entre as lendas criadas pelo tempo e as árvores que eu conheço de brincar, uma tenda envolta nos aromas das estações do meu calendário de criança. Depois acendemos archotes para nos alumiarem nas noites mais escuras em que não se sinta a lua, e com a sua chama oferecemos eco e sombra ao abraço eterno e envolto em beijos, que será sempre a nossa forma de lá morar. A nossa tenda em tons de azul tal qual o céu que se vê nos dias claros e perfeitos. E que venham tormentas, raios e ventos, que soltem sobre nós ferozes Adamastores em todos os cabos e no dobrar dos dias... Que venham e nos chamem loucos, infelizes e insensatos. Resistiremos sempre agarrados à raiz de um amor assim perfeito e eterno. Até o

"NÓS" em Vila Viçosa

Voltarei sempre aqui à minha eterna casa onde a alma se faz maior e transborda de palavras em instantes onde acontece a poesia. Voltarei e trarei comigo colado aos pés e ao ser, o mundo inteiro que tomei por vontade e ousadia, para me sentar quiçá à sombra de uma laranjeira da Praça e sentir-me perder no tempo e na consciência daquilo que é passado e do que existe e é presente; se tudo isso eu sou em cada instante. Voltarei para juntar afectos, todos os perpétuos amores, e celebrá-los por entre o abraço terno e constante dos olhares que para mim têm nome e uma história entrançada na minha própria história. Voltarei para restaurar memórias nas noite quentes do solstício de Junho, beber da paz da água que corre em cada fonte, fazer o olhar tomar cor das sardinheiras que a mãe pôs na varanda e que brilham por sobre o tom alvo da cal... Voltarei por entre o estio e a calma, mais feliz e completo do que nunca por entre a festa do encontro do berço com o melhor destino. V

Há tanto tempo...

A noite quente denuncia a traição do tempo: já é verão. Não tardará o solstício, mas este chão em brasa, o forno que o sol todo o dia incendiou, antecipou-se e tem marca indelével de Alentejo e estio. Conheço-me destas noites e sigo com a mãe e o pai tentando caçar o fresco na esperança das esquinas da próxima rua. Paramos de vez em quando para dois dedos de conversa; porque nos cruzamos com caçadores de brisa iguais a nós ou então porque os grupos sentados à porta reclamam um beijo enfeitado de palavras. E tudo começa sempre com um "há tanto tempo". A Maria aprendeu... ou melhor, tentou aprender a costurar lá em casa quando a minha mãe fazia vestidos, saias e blusas na casa da Rua de Três às clientes que escolhiam modelos de roupa folheando a elegância de uma Burda ou outros figurinos. - Há tanto tempo... a tua mãe pedia para eu te ir adormecer e tu nunca querias dormir. Eu punha os meus dedos sobre os teus olhos, forçava-te a dormir, mas tu acabavas sempre a abri-los e a fa

“O que espero da vida é nascer”

Gosto de temperar o silêncio com a sombra. Deixo acesa a luz do corredor, apago todas as da sala, e reclino-me no sofá para ir escrevendo como se o i-Pad fosse um muito privado écran de cinema onde eu teço histórias usando palavras. O silêncio dá-me o tempo todo para te ouvir e falar contigo; a sombra apaga o meu espaço real e traz-me todo o universo onde os meus sonhos te veem e te sentem. E assim não há serão que eu não passe contigo. Hoje escrevo para ti no mesmo instante em que chega uma mensagem tua. Escutas "Corações sentidos corações" do Fausto e pensaste em mim. Em 1985 fui com uns colegas de Faculdade comprar isqueiros descartáveis para irmos juntos à Reitoria a um concerto do Fausto e do seu "Despertar dos Alquimistas". Não queimámos os dedos e não consigo recordar-me se fizemos chama na altura da música que escutas agora, e que a determinada altura afirma que "o que espero da vida é nascer". As tuas palavras chegaram perfeitas na voz

As Montanhas Russas e as Alentejanas

O meu sobrinho João concluiu com êxito o quarto ano de escolaridade, e com apenas nove anos experimentou a sua primeira viagem de finalistas; um passeio de autocarro que o levou até Tavira e Sevilha juntamente com os colegas de escola. Munido de um pequeno bloco Moleskine fez das suas folhas um "livro de bordo" que partilhou comigo num destes serões. Entre outras coisas, fiquei a saber que um colega queria instituir o Dia Internacional da Directa para que ninguém pudesse dormir, que um outro se perdeu de amores pela paisagem e que uma colega ficou com fama de medrosa por ter chorado numa Montanha Russa da Isla Mágica. Trouxe trabalho de casa numa encomenda literária que inclua uma aventura com os heróis João, Guilherme e Lourenço, e uma praia do Algarve com vestígios de Vikings. Fará por estes dias trinta e nove anos que eu concluí o quarto ano, então quarta classe, e fui numa viagem de finalistas à Serra D' Ossa, nessa estonteante distância de vinte quilómetros

Os instantes

Há instantes que fazem emergir a impotência das palavras na tradução da verdade daquilo que se sente. Talvez os poetas se aproximem mais dessa verdade calando os tabus e matando as reservas na hora em que bebem inspiração da alma para a escolha e alinhamento das palavras certas… São os instantes que nos fazem maiores, que mudam convicções, destroem convenções, sufocam impossíveis, saram feridas, apagam medos, restauram a fé, recarregam sorrisos; instantes que fazem emergir da vida as mais férreas e acesas vontades de lutar por tudo aquilo que mais se quer e que se sente. São os instantes em que a alma se liberta das cartilhas e das sebentas que prendem os demissionários de si mesmos, os imbecis que afogam o rosto e a identidade, auto diluindo-se numa multidão apátrida e anónima onde jamais serão questionadas sobre o que quer que seja. São os instantes da doce coerência entre a nossa génese e o caminho que fazemos. No silêncio e no recato do carro, existiu um instante no dom

E apenas o desejo coerente e nosso

Da nossa tarde trouxe palavras infinitas que vou guardando em folhas brancas desenhadas a tinta de cor azul, e trouxe algumas fotos que tirámos e que eu vou revendo, sentindo às vezes por momentos, quase sempre que regresso do voo do pensamento, que as olho a sorrir. Gosto particularmente daquela em que os nossos pés parecem beijar-se sobre o chão da beira Tejo, e sei bem do que falávamos por ali sentados enquanto um paquete dizia adeus a Lisboa, as ondas se entretinham esforçada e ruidosamente a calar a maré baixa e nós brincávamos com a elegância e a modernidade dos nossos sapatos. Falávamos de futuro... O mesmo futuro que nos fez caminhar depois mais um pouco de frente para o sol poente e nos ofereceu o instante de um abraço. O espaço iluminado pelas paredes num tom lilás a lembrarem os campos da planície onde cresci a sonhar contigo... O espaço que não consegue abafar o ruído estridente do eléctrico nos carris ousados de uma das curvas do Chiado, e que deixa vir até mim

Varandas inéditas

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O teu amor abriu em mim novas varandas, generosos parapeitos rasgados e de primavera com vista para as cidades todas do universo. Varandas, assentos privilegiados de onde o olhar se solta e voa sem temores ou cansaços trazendo-me a poesia na forma de mil palavras. Sim, eu ganho o mundo inteiro nessas inéditas perspectivas iluminadas e viçosas que me ofereces em cada beijo, em cada abraço... no sossego infinito e doce de nunca estar só. E os dias abrem-se de sol e a casa que sustenta este sentir tem sina e genética de Carmo e Trindade, imbatível e eterna colina de Lisboa à prova de dores, de terramotos e tormentas. Por ti fico rés-vés com a sorte e agarro-a fazendo-a definitivamente minha. Viverás para sempre aqui comigo na coerência do querer e da liberdade que semeia cravos em todos os amanheceres. Novas varandas… Cravos rubros, tal qual o sangue da torrente de um coração que é teu mas que bate em mim.

As manhãs...

Há manhãs tecidas pela genética dos encontros, dealbar da saudade que a noite descobriu e revelou intensa por entre a distância. Há manhãs de Junho denunciadas apenas pelo grito rubro da taça de cerejas maduras que ilumina a mesa do pequeno-almoço tomado a uma hora tardia. São as manhãs temperadas de vontade, as manhãs que soubemos inventar em nós e a que legitimamente chamamos nossas pela força com que as desejámos. E mesmo que o sol de Junho esteja oculto e o não possamos ver, entendemos que o céu vibra com a nossa festa e não resistiu a vir abraçar-nos de chuva. O céu dos deuses, Olimpo da crença de todos os Homens e de todos os tempos alegra-se connosco e celebra com lágrimas férteis a alegria da madrugada que traz com ela a sina de um beijo. Há manhãs que jamais deixarei morrer.  Esta manhã.

A noite de Santo António

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São nove e meia da noite e a auto-estrada A5 a caminho de Lisboa vai tão cheia quanto nas manhãs dos dias de labor. Ao chegar ao túnel nas Amoreiras, viro para Campolide e consigo estacionar no parque do Marquês de Pombal. Saio para a Feira do Livro, vou até à banca do "Nós" e já de caminho para a Avenida não resisto e compro uma fartura. Atravesso a rotunda sem trânsito e sem bicampeão a sacudir o açúcar que se aloja na barba juntamente com o gosto a canela, e ainda muito a tempo de ver o aquecimento da Bica na pré-descida da Avenida. Eu desço pelo lado esquerdo e apercebo-me que já ninguém marcha. As trupes dos bairros dançam debaixo das luzes na zona das bancadas e entre actuações, aproveitam para fumar um cigarro, as raparigas aliviam os calcantes dos sapatos apertados e acode-se ao chamamento da família e dos amigos. Continuo a descer e oferecem-me uma sardinha de cartão. Os meus sobrinhos irão deliciar-se com ela embora suspirem por um capacete de manjeri

Sob o luar de Santo António

Hesito entre fazer-te um fado alinhando as palavras de amor com o eco de todas as guitarras pelas vielas e becos de Alfama, ou então pintar de rimas só nossas, a minha marcha, o Bairro Alto, afinando depois o passo com o toque da caixa, e desfilando para ganhar a noite mais longa de Lisboa. Ou talvez até faça as duas coisas ao mesmo tempo, aproveitando ainda para resgatar também os cravos de todos os manjericos, enchendo-os de quadras só para ti: Pelas varandas todas da cidade Espreitei contigo e com o desejo E o que vimos? Lisboa? A liberdade? O universo todo num só beijo. E… Lisboa com sede de festa e magia Deu-nos o braço, veio connosco namorar Nós demos-lhe o canto e a poesia E ela pôs o seu céu no teu olhar. Num abraço eterno entre a multidão, comeremos sardinhas e depois o pão para onde elas pingaram generosas ao sair da brasa, partilharemos uma fartura temperada de Licor Beirão, saltaremos a fogueira acesa no asfalto arrendado de basalto e granito de uma

Na pedra mais clara do ribeiro… por entre aromas de poejo e hortelã

Na pedra mais clara do ribeiro, polida pela avó e pelas suas mãos envoltas em sabão nas manhãs quentes de primavera, sento-me a descansar por entre o aroma do poejo e da hortelã. Escutam-se grilos ao longe, lá mais para o cimo do monte tingido de esteva e giesta, enquanto a água responde com um ligeiro e contínuo suspiro ao afago que a minha mão lhe oferece, tomando de si uma frescura que se agradece. A planície estendida ao céu e ao sol transformada na minha imensa casa enquanto te escrevo palavras de amor. E as águas que o inverno guardou, aquelas mesmas das torrentes em tantas manhãs e tardes de tormenta, são agora a bênção do Divino cruzando o estio. Aqui sentado, coroado poeta por ti e por este amor que me revelas maior a cada instante, eu sou apenas o elo de uma história com raízes de tantos anos, um poeta que tece palavras, tal qual as mãos filhas e mestras da poesia que por entre a espuma e o sabão teceram odes de coragem sem outras rimas que não a de vida com liberda

Portugal, pois claro…

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Por muito longe que estejamos do mar nunca conseguiremos estar a mais de um par de centenas de quilómetros, um ínfimo passo de formiga no todo imenso do universo. E por isso somos todos marinheiros, de alma e tecidos da ousadia de navegar, até mesmo quando entre pinhos e carvalhos subimos as serras, desenhados degraus para um infinito em tons de azul, o céu que sempre insistimos chamar nosso… As serras beijadas pelos mesmos ventos com aroma de sal. Temos fé, caminhamos como quem reza e acreditamos no destino que cantamos até a chorar. O fado, o xaile preto, mil equívocos recorrentes numa história que parece sempre querer contrariar a boa sorte; e os heróis que entregam o suor à seara conhecem às vezes a dor de não ter pão. Não nos falem de impossíveis, e de relógios... no final acabamos sempre a conseguir, “desenrascamo-nos” e bate sempre tudo certo, ainda sobrando tempo para comemorar as vitórias com um copo de tinto. Do Douro, Alentejo, da Bairrada ou do Dão? Tanto

Os canteiros que o dia me oferece

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O dia oferece-me um canteiro imenso onde eu pela ousadia e com as minhas mãos, rasgo a terra, e deixo explodir de raízes e flores, a memória semente dos beijos todos que me deste nos entardeceres que fizemos nossos. A fertilidade de tudo aquilo que colhe de nós o suor de um intenso querer... E é o teu aroma que se solta então das palavras que colho e vou compondo na tarde em que o céu enegrece e a chuva se anuncia para calar o pó do deserto que o vento trouxe com ele. Palavras como chuva... mas para calar saudades. Palavras tuas que me abraçam e me resgatam da solidão. Por ti nunca serei um homem só caminhando assim apressado por entre os canteiros de um jardim de hortênsias e rosas de primavera; dentro do silêncio dos meus lábios mora o canto de todas as palavras mais doces... As tuas palavras. O eco eterno e perfeito dos nossos beijos.

“O bom, o mau e o vilão”

Buffet , cerejas fantásticas, conversa séria, trabalhos, férias, filhos, memórias, boletim clínico, exames... Mas sim, apesar de tudo isso continuamos super vivos, e mal soou o " Staying alive " na voz eternamente esganiçada dos manos Gibbs , foi como se uma mola interior nos tivesse feito saltar para pista. Ao jeito de "nós ainda ontem dançámos isto", ninguém diria que esse ontem foi há mais de trinta anos; mas os passos de dança são definitivamente como andar de bicicleta e nunca se esquecem. Surpreendemo-nos; afinal as barrigas e as celulites (hipotéticas, se não as amigas não me perdoam) não mataram o Travolta que habita dentro de nós. " Wake me up before you go-go ". Sim George, acordadíssimos e eléctricos como um "yo-yo". Mas aquela do " you put the boom-boom into my heart " nunca foi tão verdadeira, apesar de muitos de nós termos tomado o anti-hipertensor logo pela manhã. O cansaço... " I will survive ". Cl

Era uma vez uma princesa mais bonita que o sol

Era uma vez… Uma princesa mais bonita que o sol e sempre envolta num intenso gosto a sal. O seu olhar doce contrariava esse destino e esse aroma, e o seu querer insistia em suster o tempo que parecia empenhado em acelerar e chegar rápido ao fim da história. Como se a respiração viesse limitada pela força ténue de uns pulmões cansados e cada inspiração e expiração não oferecessem mais um segundo para viver, mas tirassem um precioso e raro instante. Mas os milagres acontecem na vida de quem os procura e conquista, e Deus exprime-se na excelência do melhor que têm os Homens. A princesa um dia adormeceu, e tal como a outra bela das histórias de encantar, acordou semanas mais tarde com todo o tempo do mundo para viver. O relógio passara finalmente a ser seu fiel companheiro e ela viverá assim feliz para sempre. Há 23 anos que sou amigo da mãe da Alexandra, a princesa de que vos falo e que tinha quatro anos nessa altura em que a conheci. Como a outra, a mãe da coragem de Bre

A nossa história

O tempo mandou instalar uma mesa para dois na mesma esquina onde um dia a História mudou numa longínqua tarde de Fevereiro. Mataram o rei. Viva a República! E na tarde quente deste Junho, só o Terreiro e o Tejo parecem iguais, abraçando-nos o olhar nos seus respectivos tons de ocre e azul, ao jeito de quem diz: - Há tanto tempo que esperávamos aqui por vós. Sim. Eu também há muito que pedia à sorte para me fazer chegar aqui e a este instante, a esta esquina que parece ter nascido para mudar a História e a história de cada um. O teu olhar acendido pela brisa quente já devolveu ao panteão as cinzas fúnebres das ilusões que coroaram todos os falsos amores. O teu olhar é a estrada da minha mais do que segura e verdadeira rota. Viva o futuro. E quando já deixávamos a nossa mesa e me deste um beijo que ainda sabia a café, eu senti-me abraçado à história para a qual nasci. Feliz, olhei de relance para o Tejo e para o Terreiro; sorriam comigo. E deixei-os então por al