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A mostrar mensagens de 2017

Tempo novo

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Indiferente à posição da Terra no seu passeio ao redor do sol, o tempo será novo ou velho consoante aquilo que fizermos dele. Demasiadas vezes, Janeiro é tão só uma ilusão. Os dias novos são aqueles que se inscrevem na nossa história pela forma intensa com que permitem cumprir os sonhos e a vontade, e, pelo contrário, são moribundos os instantes em que, contrariados, arrastamos os pés de encontro àquilo que não somos ou não queremos, mesmo que seja tudo o que os outros esperam de nós. Há muito de réveillon numa declaração de amor, num beijo, num sim ou num não que já tardavam, numa viagem, num livro que se escreve ou que se lê, numa conversa com vista para o coração, num concerto, numa música, na carícia de uma rosa encarnada, na madrugada que cheira a liberdade, no passeio numa praia deserta, no reencontro com a autoestima no enterro de uma qualquer ilusão. Sempre, sem foguetes, passas, espumante, cuecas ridículas de cor azul e as tão famosas astrológicas profecias. F

Natal 2017

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Quando os meus olhos se fechavam contra o colo das avós, com força, não fosse um olhar furtivo assustar o Menino Jesus, que trazia as prendas, talvez eu ainda não desconfiasse que o Salvador nasce milhões de vezes nos braços de quem nos sossega e acaricia, e que Belém é, afinal, a nossa casa e o melhor presente. O tilintar dos vidros na cristaleira da sala do primeiro andar sempre que corríamos com mais pressa, e às vezes descalços, eram sinos informais e sem bronze colocados nas torres com vista para o universo, muito mais do que apenas uma cidade. Por esse onírico campanário se desenhavam histórias de rapazes com asas e super poderes. Os sonhos desmentem o impossível e descalçam o medo que nos tolhe o caminhar. E muito mais do que no menino reluzente e gordo moldado no barro pelos artesãos oleiros do Redondo, Cristo resplandecia no musgo trazido das árvores mais velhas do olival. Em tufos enormes de muitos tons de verde, o musgo tinha ainda preso a si, a terra cúmplice das mulh

O Homem...

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O Homem que despreza as suas raízes é um pinheiro ornado de Natal no recanto de uma sala qualquer. Poderá até brilhar intensamente, tomando benefício das estrelas de purpurina, e pode até acontecer que a sala cumpra a magnificência dos poderosos, mas a árvore morrerá à fome e à sede, acabando sempre por tomar sepultura num desconfortável e reles contentor do lixo, por entre a amarrotada agonia dos papéis de embrulho que ajudaram na festa. O Homem que renega a sua história, cala a essência que tomou dos beijos simples do mel do berço, focando-se apenas nos vistosos sobretudos de outras peles que lhes possam cumprir a vaidade. Estes Homens são máscaras caras que se passeiam pelos dias de Natal e de todo o ano, contentes e risonhos por terem há muito esquecido que a mentira tem uma existência fugaz, e que para cada máscara existe sempre o fogo da verdade e a triste sina das cinzas espalhadas por uma quarta-feira que o calendário senta em Fevereiro ou Março. Dizem os outros Home

Os beijos que escrevem livros…

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Enquanto andamos pela Praça a brincar às escondidas ou aos Jogos Sem Fronteiras, um tio que passe por ali, e para quem corramos a saudar com um beijo, talvez puxe do porta-moedas, guardado ao lado dos cigarros Kentucky ou Definitivos, e nos dê uma moeda de dez tostões que guardaremos no bolso até acabar a brincadeira. Nas padarias vendem broas de azeite e de manteiga, e eu prefiro as primeiras; sendo quase certo que a dita moeda castanha saltará do meu bolso para a gaveta do balcão que a mulher de bata branca vai abrindo ao ritmo da saída dos papos-secos e dos pães de quilo e meio quilo. Assim se aguenta a tarde até à hora do jantar, quando a mãe abrir a janela para nos chamar: - Oh Zé Artuuuuur. Ao ouvir chamar pelo meu irmão, eu já sei que a duração do "ur" é diretamente proporcional à pressa que devo ter, sabendo assim se deverei ou não correr. Depois do jantar virão as tias e as avós passar o serão, e nós já de pijama, estafados pela brincadeira e com os dentes j

As paredes encarnadas...

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Por mais confortáveis e elegantes que sejam as gavetas das cómodas e os armários, para a vida só contam os instantes passados na cumplicidade do sol... e do luar. Para comprovar esta minha convicção, desmentindo simultaneamente os que apelam ao hipócrita recolhimento de si mesmos em mobiliário mais ou menos sagrado, apertem o cinto e venham comigo ao norte numa viagem de trabalho. Na noite gélida do Porto, subindo a escada de acesso a um dos meus restaurantes favoritos, o Mendi , de comida Indiana, apanhei do chão uma camélia caída algures de uma varanda pela força do vento ou da chuva. Era uma flor "de cabeça para baixo" nos degraus já muito gastos de uma velha escada, mas, uma flor é como um Homem e nunca deixa de o ser, nem mesmo quando morre. Apanhei-a, pu-la no bolso do casaco e deixei-a ficar por ali entre as chaves, enquanto comia o de sempre: uma Samosa de carne e outra vegetariana, o Murgh Karahi Masala acompanhado de arroz branco; tudo acompanhado por u

A árvore que namora com a serra

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Na auto-estrada um, no sentido Lisboa Porto, do lado esquerdo e quase a chegar ao nó de Torres Novas, há uma árvore “empoleirada” no cimo de um pequeno monte, que há anos namora com a Serra D’Aire e Candeeiros, ali mesmo em frente. Sempre que a primavera escreve versos de urze e giesta, pela encosta acima, ela responde ao cortejar da serra, cobrindo de verde a sua paixão. Chorará depois, bem mais tarde, e folha a folha, quando Dezembro lhe desmanchar definitivamente a esperança de que seria este o ano que lhes “mataria” a distância. Gosto de entender a linguagem das árvores, sentir o seu abraço distendido e honesto às horas que passam, e prometi a mim mesmo que um dia escreveria sobre este amor tão grande, mas tão impossível quanto o do sol pelo luar, ou o do norte pelo sul no contexto de uma qualquer hipotética, mas irresistível, atração polar. Mas talvez um dia o vento sopre de um modo tão forte, que a árvore e a raiz possam voar finalmente sobre a auto-estrada, entregando-se

Paralelos ao sol

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Quando caminhamos paralelos ao sol descobrimos infinitas linhas informais que alinham os nossos passos com a melhor “caligrafia” do sonho e da vontade. Nus, sem roupas, compromissos ou cintos que nos “atem”, somos apenas nós e a nossa história. Tempero a manhã fria com o aroma do café que pinga, paciente, desde o filtro de papel e a cafeteira de vidro. Para lá da janela, o vento vai, aos poucos, roubado o ouro que o Outono ofereceu a um velho plátano, enquanto o Atlântico se mantém convictamente azul entre a curva da Caparica e o Cabo Espichel. Calei a rádio. Já não tolero o relato dos banquetes dos poderosos sobre a dolorosa e jazente morbidez da gente, famosa ou não, já sepultada ou em vias de o ser. A mediocridade dos intérpretes não acompanha a elevada expectativa dos entusiastas e cegos militantes das ideologias, e eu sinto desprezo pela patética figura destes últimos na hora de defenderem os dejetos, reconhecendo-lhes um “indiscutível” valor, aproveitando para, de cami

Gosto muito quando a noite põe um vestido encarnado

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Gosto muito quando a noite põe um vestido encarnado… Nas estradas de pó do deserto de areia, ou nas praças também desertas das cidades a que a hora roubou a gente, erguem-se imponentes pirâmides de luz com vértice de encontro ao céu estrelado, escadas informais por onde sobe o olhar e o sonho, sepultadas, definitivamente, as dores e o cansaço. Não importa nunca o nome das estradas, das ruas ou dos rios… Tejo, Nilo ou Sena, são irrelevantes detalhes das águas que correm soltas, sem cessar, cumprindo-nos a vontade e levando sem retorno, as mágoas, como quem devolve o sal ao mar. Na esquina de cada segundo desses ocasos rubros tingidos pela paixão, eu construirei um palácio de pedra, gigantesco, como quem eleva aos altares as coordenadas do destino traçadas sobre o mais improvável chão. Gosto muito quando a noite põe um vestido encarnado… Para comprovar esta agonia dos impossíveis, se acaso mais alguma prova fosse precisa, sempre te direi que um abraço teu consegue até

Vítor

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Debruçadas nos parapeitos das varandas rasgadas sobre a ousadia, as palavras dos poetas, íntimas dos cravos e das sardinheiras, esperam, incessantes, por uma voz que as beije e as faça voar com os pássaros, dobrando sem medos, as esquinas de todas as ruas. Talvez a voz se aproxime quando a guitarra já tiver acordado o coração, e a saudade, irrequieta, já nos tiver salgado o rosto, colando-nos à pele a fome dos abraços, bem mais dolorosa que a sua homónima relativa ao pão. Quantas palavras de tantos poetas correrão então pela cidade, e quantos rostos, corpos, trejeitos, quanto choro, riso, quantas gargalhadas, o gesto igual, normal, anormal, diferente… tudo espreitará no palco, que é o que mais se assemelha a uma rua, por poder ser a casa de toda a gente. Vítor é a arte que resgata do silêncio as palavras dos poetas, e é a poesia toda: dita, respirada, soletrada, mastigada, deglutida, incontida, de corpo inteiro e despida de medo e preconceito. Como o eco doce que nasce de

O homem e a montanha

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Numa manhã de Outono, o homem saiu de casa muito cedo, abrigando o corpo do frio, e apoiando-se no bordão de tudo aquilo que já viveu no tempo que enfeitou de rugas a sua idade. Subiu a montanha à sua frente, devagar, a passo curto, conversando, em silêncio, com as ervas do caminho, enquanto o sol penteava o horizonte usando todas as cores que moram na claridade. Os bolsos grandes, de um e outro lado do fato, guardam pedras colhidas aqui e ali, búzios da terra que contam a história da estrada e do caminheiro. É forte a tentação de olhar para trás, mas resiste, porque ele sabe que a verdadeira dimensão de um homem é o destino que assume ter à sua frente. Mais um passo, outro... e finalmente, o topo. Ali, o vento sopra versos que aprendeu com as árvores e os pássaros, o horizonte espreguiça-se em novos dias para caminhar, e as nuvens, essas que o povo diz trazerem novas de Alcácer nas manhãs da esperança, são os gestos de um céu que se curva só para nos vir beijar. Mais logo, à

O abraço do velho sábio

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Há um velho sábio sentado na torre do edifício mais alto que ladeia a praça, ali, entretido à conversa com os outros pássaros, que vão e vêm no seu voo de mil anos. A morte, que apenas soterra as mãos e os lábios, liberta-nos do desconforto das forças centrípetas e desata-nos as asas para que toquemos, bem lá no cimo, as palavras todas que os heróis lançaram ao céu no seu grito de liberdade. Esta semana pedi ao meu querido amigo José Manuel Delgado que me enviasse desde a sua Andaluzia, um desenho dos muitos que vai fazendo e eu vou espreitando pelo Facebook . Pedi-lhe um desenho que contasse uma história. Este que recebi e encima o texto carrega em si a memória de um facto real ocorrido no dia 4 de Fevereiro de 1888, quando na sua terra, Riotinto , na serra de Huelva, uma grande manifestação reclamava contra os baixos salários praticados pela companhia mineira, e também contra a poluição da queima do minério a céu aberto, indutora de gases que roubavam a fertilidade dos

Buscando o inverno

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Quando Outubro nos rouba a fina subtileza dos trajes de água, emergem na tarde quente, e como que em íntima prece ao céu, as marcas da história que trazemos coladas ao peito. Pessoas, beijos, deceções, desapegos, encontros, silêncios, ilusões, crenças e mágoas… Tudo registado e perene, no coração, moldando por dentro, a epidérmica orografia que lhes oferece um teto e uma casa. Passos que tomaram matrícula das vontades da alma descansam agora sonolentos na berma das rugas, essas estradas que foram nossas e secaram pelo desamor ou pela má sorte. Mas o inverno talvez não tarde e cubra de fontes os dias que virão, semeando flores e pão sobre este esqueleto que a idade, aos poucos, foi tecendo. Quem olha para o passado, não vive, limitando-se a rodopiar num círculo fechado, sucumbindo pela vertigem, e magoando-se ao tropeçar nas lápides que jazem por ali. Vive quem toma o tempo e bebe o fôlego das suas águas soltas, caminhando sem temer o desconhecido que existe para lá do

O açúcar

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Engana-se quem pensa que a vida é o caminho para uma cova apertada e escura. Abraçados pelo sol no conforto de um velho banco de madeira, que é o próprio tempo, cada livro que lemos, cada cidade a que oferecemos os pés e o olhar, cada beijo, cada verso, as palavras todas, as paixões, as praias onde falámos, sós, com o mar... Oferecem-nos troncos, ramos e folhas que encurtam a distância para o céu; e é por aí que vamos. Esta semana partiu um velho amigo de Vila Viçosa, vizinho da mesma rua em casas frente a frente, rapaz da minha idade, colega de escola e de muitas brincadeiras. No inevitável revisitar das memórias desse tempo, deparei-me com os curtos passeios que fazíamos às vezes entre a nossa Rua de Três e o Convento da Esperança, onde vivia a sua avó, a D. Ascensão, que nos dava de lanchar: pão barrado com banha e depois polvilhado com açúcar. Nós, os que não precisamos de perfumar a nossa existência com os aromas de povo, porque o somos verdadeiramente na essência e

As praias

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Despojei o corpo, do medo e dos arquétipos, entornando depois sobre um instante qualquer, a areia toda das praias onde brinquei descalço, e que transportei, alegre, com a crucial ajuda dos bolsos das calças. Sobre essa ampulheta informal que carrega todas as eras da minha história, há um velho búzio que tomou o canto das ondas e o guardou com religiosa fidelidade, e há árvores entretidas a desenharem sombras que perfumam a matiz alourada das dunas. Desse instante em que me sentei no chão cruzando as pernas e descruzando a liberdade, afastei os contentores e a lama, varri o pó, o eco das promoções e das promessas de produtos, serviços e candidatos, sacudi as ervas já mortas, e agitei o ar impregnado de monóxido de carbono, fazendo nascer a praia que sonhei; muito a tempo de sair a navegar. Hoje, e sempre, eu sou este encontro de cor indefinida, mas muito minha; eu sou a história entrelaçada nos sonhos todos que guardei e trouxe do mar, repousando e tomando fôlego da brisa fre

Outono

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O Outono tem olhos doces e alaranjados, da cor da marmelada em taças de porcelana que as mães esconderam debaixo de um recorte de papel vegetal, e puseram à janela para que secasse ao sol. O Outono abraça-nos com uma brisa fresca, envolvendo-nos na lembrança de todas as idades. Veste-nos camisolas, casacos e sobretudos de bolsos fartos onde escondemos a mão, recordando-nos que onde agora cabe a carteira ou o telemóvel, antes vivia a bolsa dos berlindes ou o pião. O Outono chama-nos para casa, senta-nos em frente a livros que cheiram a novos, e a alvos cadernos que de tão aprumados, facilmente nos arrancam o compromisso de novas histórias escritas com uma excelente caligrafia. Sim, um caderno em branco é como o nascer do dia. A construção da cabana de canas e pedra que projetámos para uma das encostas do castelo ficará agora suspensa, e talvez nos deparemos com os seus destroços, daqui a uns meses, quando andarmos em busca de musgo para o presépio. O Outono toma o canto

JFK

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O tempo livre não é muito, mas o metro, aqui mesmo à porta do Centro de Congressos, consegue levar-me de forma célere até ao cemitério de Arlington. Passo o pórtico da segurança, recolho um mapa, sigo as setas... e os sapatos de sola resvalam no piso polido por onde caminho na companhia dos esquilos, procurando a sombra dos enormes carvalhos. O calor e o tom cinza do céu parecem confirmar a trovoada que a meteorologia já ousara anunciar. Viro à direita, depois à esquerda, subo uns degraus, e chego finalmente ao túmulo do Presidente Kennedy, cruzando-me com um grupo de turistas que já regressava. Agora, somos cinco pessoas, o silêncio e uma chama. Do silêncio dos grandes Homens observa-se melhor a repugnante pequenez dos outros, e à luz da chama que persiste na memória sobre as balas de uma tarde de Novembro de 63, em Dallas, conseguimos ver-nos a viver uma imensa, e triste, sexta-feira treze. Talvez já não tarde a madrugada de um sábado que desminta este tempo e o devolva

“I have a dream”

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O tempo não apaga o eco das palavras incandescentes, fogueiras acendidas pelo ímpeto de liberdade, que persistem, aqui, entre os ramos dos carvalhos e as farripas de sol, que os beijam em êxtase ao fim da tarde. O sangue, rubro, desenha papoilas que nos afloram ao olhar, candeias em verso, velas que nos limpam os soluços da viagem e nos impedem de naufragar. Os meninos, que vieram de perto ou de mais longe, e que trajam vestes coloridas sobre os seus corações sem cor, fizeram uma roda gigante onde as mãos e as vozes rimam com o futuro, e com o poema desenhado para uma eterna canção de amor. Há beijos sentados nos bancos de madeira, detalhes de amores sem género, credo, rótulo, dinheiro ou distância, beijos sem aditivos ou corantes, e que a alma desenhou à sua maneira, como se mais nada tivesse importância. O homem que salta à corda e a mulher que assobia, passeando-se de mãos nos bolsos por entre a gente, decalcam gestos sobre a verdade que trazem ao peito, esmagando pela

Calípolis

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Somos alegres, otimistas, e temos, em geral, muita graça. Mesmo que se nos atrase o amanhecer, e não possamos ver o sol, fazemos renascer o sorriso com um chocolate quente na barraca do brinhol . E a graça? Se não a virmos a passear por aí, sabemos que estará, por certo, na Fonte da Praça. Temos a alma gigante que é raiz de uma fé inspiradora. Por exemplo, jamais assumimos morrer, vamos sempre passar a eternidade, e descansar, para detrás de Nossa Senhora. Somos uma terra curiosa com os detalhes doces do sul, e outros que são únicos e interessantes. Temos as alcunhas, que por aqui são anexins, e temos a dolência Alentejana presa na voz, mas também temos três aldeias que vão dar ao Rossio, e uma ilha onde se pode chegar andando, bastando cruzar a Porta dos Nós. Sabemos onde é o paraíso. Quem desce dos Capuchos em direção ao Galandim , vira depois do convento, à esquerda, seguindo sempre pela cerca do Jardim. Se procurarem a Rua das Escadinhas, a da Freira, a do Poço, a Cor

Setembro despenteia o tempo…

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Setembro despenteia o tempo e as árvores, arrastando e prendendo folhas rubras e amarelas na franja de todos os minutos. Para além disso, Setembro, calça-nos e fecha-nos os pés em sapatos, com os atacadores a prenderem as memórias das tardes passadas no campo ou na imensidão da areia que se enfeita com a espuma do mar. Dirá quem acordar agora de um sono profundo, que Setembro semeia sombras, projetando os troncos vazios sobre as fachadas das casas; como se o sol morresse definitivamente debaixo das folhas cansadas ou dentro da pele engraxada das botas que Setembro calçou... Os troncos apenas repousam, saboreando o gosto da sua história, e tomando fôlego para destemidas primaveras. Os troncos são como braços esperando os beijos de outros desejados braços que vivem no condomínio do peito de quem amamos. Entretido com o aroma doce de marmelos maduros, com a uva que tomou do céu, o sol, e os ouriços que soltarão as castanhas como quem nos beija o paladar, Setembro é esta casa

Novena...

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De cada vez que cortamos uma flor, mesmo com o intuito de a levar até à igreja, nós apeamos Deus do Seu altar. Por isso, é aqui, no campo bravo que o sol queima de Agosto, muito mais do que em qualquer outro lugar, que o nosso riso descalço de prudência, faz ecoar a prece das novenas, no canto feliz de acreditar. Nós sabemos, Senhor, Deus das Flores e das Fontes, que as massas estranhas que nos rasgam o corpo jamais irão além da superfície e nos atingirão a anatomia da alma, a essência doce apenas acessível ao amor. A vida é como o vento e nós somos feitos da essência do trigo, que persiste no pão. O mesmo vento que um dia beijou e brincou com as espigas nas tardes de primavera soprará mais tarde, fazendo rolar a mó no cimo de uma serra qualquer. Sim, Deus da Água, do Pão, Casa da Eternidade… mas nós gostamos tanto do nosso abraço. Eu sei que nos entendes por entre este medo que ele, o abraço, se desmanche na componente que as árvores podem espreitar e cobrir com a sua

O amor enleia-se no fio branco das rendas

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A primavera de 1981 foi o período em que a minha mãe produziu mais peças de crochet. Apanhava a automotora pela uma da tarde na estação de Vila Viçosa, apeando-se duas horas depois na Comenda, já muito próximo de Évora. Regressava a casa no autocarro das dezassete, numa viagem de cerca de uma hora. Todos os 27 dias contados a partir de  19 de Março , aquele em que fui submetido a uma cirurgia na sequência de uma apendicite que acabou em peritonite. Pelo menos, três horas de crochet por dia, porque existia ainda o tempo das esperas. O verão de 2017 segue quente no Minho, e eu agradeço a brisa fresca do percurso até à fonte do Gerês. A primeira toma de água é às sete e meia, e eu vou sozinho com dois copos na mão, que o meu dorme sempre por lá na prateleira da direita, no número 41. Depois, mais duas tomas de água, o gelo e os ultrassons no joelho da mãe, o jornal, os livros, a bica, a conversa, a raspadinha com mais ou menos sorte, a escrita, um ou outro e-mail ... Juro-vos q

As férias despenteiam o tempo…

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As férias despenteiam, definitivamente, o tempo, possibilitando que, por debaixo da habitual cortina da franja e da rigidez formal da risca ao lado e da marrafa, reencontremos partes de nós que andavam perdidas. Suspendemos a pressa e a norma, como quem dispensa o pente ou a escova, encerrando-os numa gaveta, e com a cúmplice informalidade do “vento”, revolvemos as memórias, afinando a nossa história pela verdade; tomamos o fresco da manhã nas margens das ribeiras que nos servem de espelho, reabrindo e reentrando nos espaços esquecidos que laqueámos por amor e primavera, mas que acabámos por descurar e abandonar ao pó e às agruras húmidas de um inverno mais ou menos tortuoso. Quem ama "aluga" muitas salas dessa casa imensa que traz ao peito, espaços que regressarão um dia à sua posse, sabe Deus em que estado de conservação... e ânimo. Nas férias, descalçamo-nos e beijamos a terra com os pés soltos, saboreando sem reservas e a cada passo, o doce prazer da liberdade.

As árvores são irmãs dos Homens…

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O lenhador, de barba cerrada e o suor a dar-lhe um brilho húmido ao peito e aos braços, recolhe o último pedaço da árvore que acabou de cortar. A raiz abandonada fica imersa no barro vermelho que o vento vai pulverizando, aos poucos, encosta abaixo, até ao rio, enquanto os troncos repousam finalmente em forma de mesa no recanto mais nobre de um salão qualquer. As árvores são irmãs dos Homens, e só respiram e vivem quando unidos à sua raiz, sentindo a brisa nas folhas e nos troncos, sem disfarces, sem plaina e sem verniz. No teatro, quando as luzes do teatro se apagam por inspiração de Molière, e a cortina se abre ao som da música, quantas peças ficam suspensas por um par de horas, nas plateias, enquanto os atores oferecem no palco, o corpo à arte. Há gente que mora à boca de cena, mas do lado de cá, da suposta verdade, debitando as deixas que criou para si, personagens sonolentas, sem interesse e sem verdade, "mesas" e "cómodas" representações, de tron

As cidades falam de nós

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Mais do que as linhas traçadas pelos arquitetos ou as pedras que o mestre pedreiro alinhou para lhes cumprir a forma e oferecer coerência, as cidades guardam, fiéis, a nossa história, sendo livros de memórias impressos a três dimensões, parágrafos resistentes ao tempo e ao fogo. A toponímia cede lugar aos beijos que a alma inventou, as praças não têm estátuas ou fontes, guardando os olhares que condenaram a solidão ao cais da partida, e as pontes, sobre os rios ou as pequeníssimas ribeiras, são altares que preservam o culto dos abraços que nos fizeram mudar de vida. As árvores conservam entre os frutos, as palavras que confidenciámos às suas sombras, as mesas são círculos de amigos à volta do café, das gargalhadas e da liberdade, e por muito que o sol o envolva de luz, persistirá dolorosamente triste, o chão que foi da nossa gente, e onde hoje apenas se pisa a saudade. As cidades, mais do que tudo o que se regista numa foto tirada de manhã ou ao entardecer, guardam tudo de n

Os amigos

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Os amigos interferem, definitivamente, com o tempo, distendendo-o na ausência, e encurtando-o nas tardes dos abraços. Nestas últimas, nós usamos as mãos e a vontade para promover pregas nas horas, tentando que os minutos não fluam tão rapidamente no seu percurso ao encontro da noite. E essas pregas são bancos informais situados no meio dos jardins e dos olhares, refúgios à sombra das palavras que têm as silabas coladas com açúcar. Os amigos também rasgam janelas nos instantes opacos, desassossegam o silêncio que dói, sendo inimigos das cortinas e dos biombos. Os amigos têm o peito transparente, e o sol e a claridade, invadem, por eles, todos os segundos, atrapalhando-se às vezes, de um modo saudável, com as gargalhadas que têm raízes na alma e que andam à solta perfumando os lábios, que ganham por essa altura um irresistível tom de morango. Os amigos são donos dos beijos que “descongelam” o tempo preso em muros que bloqueiam vias sem saída, abrindo, assim, avenidas de enc

O estado da nação

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O estado da nação é, fisicamente, gasoso, envolto pela aerofagia dos líderes, perdão, dos chefes, na sua flatulência farta, no caso de estarem sentados no poder, ou da mais pestilenta ventosidade anal, no caso de tal não acontecer. O estado de saúde é débil, de patologia crónica, com os “médicos assistentes” a mudarem sistematicamente de diagnóstico ou prescrição, pois assumindo a gestão do hospital, logo tratam de adiar, dolorosamente, as cirurgias ou algum tratamento mais caro ou radical. O estado civil da nação é, definitivamente, solteiro. Todos a querem para “namorar”, ir a festas e aparecerem nas revistas, até para copular, mas depois, ao fim do dia, permanecerá sempre sozinha e sem qualquer compromisso sério e de facto, deitada à sombra dos plátanos em interação intima com a culpa, irmã que também viverá eternamente neste doloroso celibato. O estado cognitivo da nação é de demência crónica, ali algures entre o vascular e o Alzheimer, em íntima ligação com o estado de

Quem brincou e falou com o sol…

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Na Rua de Três, em Vila Viçosa, quando a mãe nos chamava desde a janela do primeiro andar, num tom alto que acentuava sempre a última sílaba para que a pudéssemos escutar no perímetro de trezentos metros entre a Praça da República e o Rossio, nós sabíamos que o jantar estava pronto. Antes de irmos a correr para casa, pedíamos ao sol de verão que esperasse por nós, que não partisse à pressa, brilhando só mais um instante sobre as linhas do castelo ou do jogo que traçáramos na terra. Mas talvez o jantar tivesse espinhas, por ser sexta-feira e os carapaus terem chegado pela manhã à banca da Dona Natalina, e o sol não tivesse qualquer oportunidade de esperar por nós, deixando em seu lugar, a lua, discreta e magnífica senhora da noite, companheira ideal para jogarmos às escondidas, brincando com as suas sombras. Bem discreta e desaparecida andaria a brisa fresca, por essa altura de Julho, quando os pais nos deixavam brincar até mais tarde, mas nunca para lá da chegada do vizinho Cris