Quem brincou e falou com o sol…


Na Rua de Três, em Vila Viçosa, quando a mãe nos chamava desde a janela do primeiro andar, num tom alto que acentuava sempre a última sílaba para que a pudéssemos escutar no perímetro de trezentos metros entre a Praça da República e o Rossio, nós sabíamos que o jantar estava pronto.
Antes de irmos a correr para casa, pedíamos ao sol de verão que esperasse por nós, que não partisse à pressa, brilhando só mais um instante sobre as linhas do castelo ou do jogo que traçáramos na terra.
Mas talvez o jantar tivesse espinhas, por ser sexta-feira e os carapaus terem chegado pela manhã à banca da Dona Natalina, e o sol não tivesse qualquer oportunidade de esperar por nós, deixando em seu lugar, a lua, discreta e magnífica senhora da noite, companheira ideal para jogarmos às escondidas, brincando com as suas sombras.
Bem discreta e desaparecida andaria a brisa fresca, por essa altura de Julho, quando os pais nos deixavam brincar até mais tarde, mas nunca para lá da chegada do vizinho Cristóvão Grilo, que era estafeta e chegava no último comboio, trazendo as encomendas desde a estação num velho mas ruidoso carro de mão.
Quem brincou e falou com o sol não tem medo de nada que lhe possam trazer os dias.
Quem se refugiou nas sombras do luar, sabe que é daí que melhor se vêem as estrelas.
Quem nunca viu e abraçou o mar, pode conhecer-lhe a voz, escutando um búzio, e o gosto a sal, através dos carapaus que foram fritos para acompanhar a salada de tomate maduro.
Quem desenhou no chão, com a ajuda de uma vara, as linhas perfeitas de um castelo, não temerá jamais, o pó que mora nos caminhos.
Quem andou pelos serões, persistente, à procura da brisa fresca, conhece bem o valor da madrugada e da liberdade.
Quem acudiu ao grito da mãe, cantando o seu nome, sabe bem que as sardinheiras floridas não são aquilo que de melhor pode enfeitar uma janela alta, e conhece bem, definitivamente, o superlativo de amar.


Julho de 2017, Ponta Delgada, meia-noite e pouco sono, eu, sentado à janela a brincar com a lua e o mar. Eu, a tirar apontamentos da insónia.


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