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A mostrar mensagens de janeiro, 2018

Bibliotecas, trincos e Madalena Iglésias

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Existe uma velha anedota acerca de um Alentejano, por certo meu compadre, que algures numa aldeia remota, entre sobreiros, esteva, e giesta, se questionava sobre o porquê de ser gratuito, o acesso aos livros na biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian. A insistência do homem relativamente a tal benefício levou a que, certo dia, o bibliotecário lhe tentasse explicar: - O Senhor Gulbenkian era um homem muito rico e com muitos poços de petróleo... Tendo esta frase sido suficiente para o Alentejano concluir: - Não diga mais nada, que eu gasto pelo menos dois litros de petróleo no candeeiro, para poder ler os três livros que todos os meses levo daqui. Há já muito tempo que nos habituámos a esgravatar os atos, os gestos ou as palavras boas, acreditando que por detrás de todos eles existe, mais ou menos camuflado, um interesse qualquer. O amor, na sua vertente mais desinteressada, que é a amizade, parece ser coisa de outras eras. E quem não sofreu já o bombardeamento d

Os rios da minha idade

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Se um dia quiserem medir a minha idade, façam-no contando os assentos de pedra que construí nas margens dos rios. Aí, onde as águas se fazem espelho e estrada, reinventei-me e reinventei cidades para onde “caminhei”, depois, usando o vento ou os remos, às vezes lutando contra a força da maré. Esta semana, enquanto regressava ao sul, fui remexendo as lembranças e sentindo os “Mostrengos” que moram na bruma dos dias… e dos rios. O autotransplante de medula que isola um amigo entre quatro paredes, assépticas, de vidro; a radioterapia de um outro e as máquinas intimidatórias que enfrentamos com máscaras que nos metem medo; a demência e a velhice dos nossos pais, e as fraturas que lhes revelam as debilidades; uma amiga que voou para longe tentando revestir de esperança, a dor da mãe que agoniza… “Aqui ao leme sou mais do que eu”… muito mais, mesmo, porque todos aqueles que amo são partes de mim, que às vezes me doem, assim, no dilema que divide os cabos entre as tormentas e a

À conversa com as azedas numa manhã de Janeiro de 2018

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A chuva já resgatou as azedas da escuridão da terra, e têm um assumidíssimo tom amarelo quase fluorescente, as bermas do meu caminho de todos os dias. Não resisto e espreguiço o olhar para longe, para o campo que ainda resta, aqui, um privilégio na periferia operária da cidade… Quem é pequeno constrói palácios com nichos para guardar do mundo as suas vaidades e o seu poder, e quem é efetivamente grande não cabe entre quatro paredes, por maior que seja o espaço que elas encerram; assumindo o universo como a sua casa, e entretendo-se à conversa com as flores do campo, e com as árvores, desmentindo, dessa forma, o frio intenso das manhãs de Janeiro. Os tetos elegantemente pintados escondem o sol, e os nichos dificultam o acesso ao mais pequeno dos abraços. A simplicidade é a antítese das fronteiras e das grades. Se um dia eu conseguir aproximar-me um pouco da dimensão da gente grande, abandonarei as avenidas onde os mantos opacos do veludo da autoestima exibem o ouro dos

Quase meio-dia…

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Quando Cristo se eleva no altar é quase meio-dia, e o meu ajoelhado silêncio destapa o desabafo do vento que sopra desde o repouso dos meus mortos, à minha frente e atrás da Senhora da Conceição, seguindo depois para lá da muralha do imenso castelo, por onde eu sairei daí a pouco, de braço dado com os meus pais. Em Vila Viçosa, com o sol a pique, eu serei sempre esta ínfima partícula do tempo, algures entre o Céu e os dias que me esperam. No final de 1973, a dificuldade em arranjar trabalho levara o meu pai até Lisboa, para a secção de peças da firma Baptista Russo, a Cabo Ruivo. Se tudo lhe corresse bem, nós juntar-nos-íamos a ele, mais tarde, concretizando a mudança da família para a capital, o que não desejávamos. Tal não chegou a acontecer, porque a 1 de Junho de 1974, um sábado, o pai iniciava funções de escriturário na Fundação da Casa de Bragança, em Vila Viçosa. Desse Natal algo amargo de 1973 ficaram as memórias e um brinquedo oferecido pela empresa: um carro