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A mostrar mensagens de 2018

A meia-noite e o tempo novo…

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Jamais declinarei a responsabilidade de fazer velho ou novo, qualquer tempo, endossando a fatura, passivamente, para o calendário. Aliás, parece-me que esta noção de tempo novo ou velho, segundo o relógio, só existe para alguém poder fazer negócio, comercializando uma espécie de carnaval, e muito “glamour”, algures entre Dezembro e Janeiro. Acredito que os vendedores de espumante e de cuecas azuis possam contribuir também, decisivamente, para a divulgação do conceito. O tempo não envelhece, nós é que deixamos apagar a esperança. O tempo não morre, nós é que nos demitimos de ressuscitar, acomodando-nos à luz fraca que mora nos sepulcros, numa traição impiedosa ao sol que nunca desiste de nos vir trazer a madrugada. A contagem do tempo feita pelo calendário é importante para efeitos fiscais, para nos caracterizar no Cartão de Cidadão, para cumprir ciclos eleitorais... Mas os anos, os dias e os minutos novos somos nós que os definimos pela convicção com que lhes oferec

O Natal é um beijo

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Quando eu era rapaz o Pai Natal não existia, e na manhã de Natal, os avós e os tios chegavam cedo a nossa casa com um presente, anunciando vir trazer-nos o Menino Jesus. Até há muito pouco tempo eu acreditei que o Menino seria essa camisola ou esse par de meias embrulhado com algumas guloseimas, mas hoje sei que o Menino Jesus era afinal o beijo que nos davam por entre um abraço que desmentia o frio de dezembro. Porquê? Porque Jesus não é algo que se vista e que nos adorne, porque Jesus não será nunca um jogo ou um pretexto que nos distraia numa tarde de amigos, e porque Jesus não é o que se embrulha em papel escolhido a gosto e submetido ao gesto de cada um. Pelo contrário, Jesus é o amor, e o amor sente-se e partilha-se na verdade de um beijo. Para além disso, se a saudade é o filtro que despreza o acessório e retém apenas o que importa, dessas gélidas manhãs Calipolenses ficaram os beijos, como detalhes de um amor incondicional e único, que foi cimento daquilo que sou.

Três apontamentos que colhi deste advento…

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De tão intensa, esta dor, alguém jamais ousará dar-lhe um nome. À saída da missa de domingo, em Vila Viçosa, cruza-se comigo a mãe de um amigo que partiu há algum tempo. Traz no rosto aquele jeito de quem chora mesmo sem chorar, e na mão uma rosa branca do andor da Senhora da Conceição, que na véspera tinha saído em procissão. Entre o Céu e a Terra, ou mesmo só por aqui, todas as mães falam a linguagem das rosas, porque o amor supremo, tal qual a dor onde os seus beijos morrem, jamais conseguirá dizer-se.   Estou com um grupo de colegas no parque onde se insere a nossa empresa e vendemos livros para ajudar a associação Cais. Se interpelamos alguém dizendo que estamos em nome desta associação, pedindo uns segundos de atenção, uma em cada dez pessoas param para nos ouvir. Se optamos por dizer que somos colegas de uma das empresas do parque, e que estamos ali para ajudar a Cais, param em média seis pessoas em cada dez. Há uma surdez seletiva que elimina a mensagem de quem tem

O sol...

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Na manhã azul de Dezembro, o sol nasceu com a convicção de derrotar a intensa geada, que por ora, pelas oito, ainda oferece uma vítrea cobertura às ervas que habitam de um e outro lado da estrada. É com o sol que entretenho o pensamento, e por isso estranho o frio quando chego finalmente e saio do carro, caminhando sozinho, e por entre folhas de Outono, até à capela que hoje me serve de destino. Passei há pouco à porta da casa do Zé e estranhei o silêncio, não conseguindo estancar a saudade. Porque é que eu não vim até cá mais vezes? Porque é que só hoje consegui encontrar tempo na agenda? Definitivamente, os amigos não são gente para adiar, e o Zé repousa agora com o rosto em sossego, naquela capela fria com o altar a oriente, por onde o sol entra de forma intensa através de uma imensa janela, como querendo muito beijar-lhe o sono e a eternidade. Rezo, desato as memórias, tento articular palavras, e faço intenção de jamais esquecer as gargalhadas e as longas conversas

Restauração

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O povo já não lava no rio porque tem o tanque na marquise ou comprou uma máquina, a prestações, na loja de um Centro Comercial. Os caixões deram lugar a urnas sofisticadas, e estas já não são talhadas com machados, sendo fabricadas em série, e chegando até nós com o patrocínio da Segurança Social. Apenas persiste quem diga que nos defende, quem continua, sofregamente, a querer comprar-nos o nosso chão sagrado, e, de forma algo atrevida, resistimos nós perante quem nos queira comprar a própria vida. A laicidade do Estado ainda não nos livrou do “ai Jesus”, nem de São Bento, que continua a confundir vinho com vinagre, “Salarizando” os Antónios por via da arrogância, muito mais do que por milagre. O carácter e a honradez estão ausentes mas constam das atas, tal qual a ubiquidade da gente que ousa vir falar-nos daquilo que mais importa: a liberdade. Por entre a amnésia generalizada e a qualidade de vida cativada, os bois trajarão velcro mas nós não nos livrarem

O último passo para o beijo das nossas mães…

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Quando o Professor Lima Martins, entre a primeira e a quarta classe, nos levava à Varandinha dos Namorados para uma aula ao ar livre, nós passávamos por debaixo da janela da Dona Luísa de Gusmão e assumíamos o seu grito e a sua ambição de ser rainha de um Portugal restaurado, não tendo dúvidas, ao chegarmos à Cegonha, que o mar se conquistava por aquela estrada. Existiam outras mas teria de ser sempre por ali: - “P’ra frente é que é Lisboa”. Crescemos e fomos estudar para o velho liceu, cujo portão era o penúltimo até ao metro zero da dita estrada. Entre os passos e os sonhos, estávamos definitivamente mais perto do mar, porque a chave seria percorrer aqueles quase cinco quilómetros adornados nas bermas por muros caiados e por oliveiras que tratávamos por tu, sobretudo na hora de buscar musgo para o presépio. Um dia partimos mesmo, e aprendemos então, o doce sentido de quem regressa. Fixámos a primeira curva de onde se avistava a torre do Paço Ducal, sentimos o gosto de pass

Regresso...

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Um a um, e muito devagar, percorro os quilómetros do caminho com a solenidade de quem venera até a mais pequena pedra. O meu berço é o sul, tenho raiz de povo, e o espaço onde nasci é um altar caiado a sol e suor, que me oferece, assim, a cada regresso um infinito de sagrado e de peregrinação. Nos lábios, a música que me assalta tem um tom dolente, pela quantidade imensa de alma que cumpre arrumar no espaço limitado da métrica dos versos. Sem bordão, com o riso e os amores na mochila, que os desamores já os chorei todos; com as mãos prontas a desenharem uma concha sob o canto fresco das fontes, não vá a força cair na tentação de adormecer. Mas hoje a água cai intensa sobre o asfalto e os campos que ladeiam a estrada, roubando-me aqui a ali, pela intensidade do nevoeiro, as árvores e os castelos que há anos me servem de referência no começo e no fim de cada jornada. Respiro fundo, aproveitando essa profundidade para me olhar de frente, de verdade, e descobrir que a essê

Viver

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Por vezes, quando me adjetivam de “estranho”, nem se dão conta de que eu apenas me esforço por cumprir o meu compromisso de liberdade. É verdade, trago-o comigo com intensidade entre os pedaços de barro encarnado, agarrado à pele queimada pelo sol e ressequida pelo vento de todas as estações. Entre o mundo e um palco, ou entre mim e uma sombra, jamais deixarei de me escolher a mim e à Terra, mesmo que nos seus mais recônditos e imprevisíveis detalhes. Viver não é esperar pelo tempo da reforma sentado num sofá confortável e com um copo de politicamente correto na mão, muito quieto para não entornar o estatuto e porque os punhos de renda atrapalham o gesto que acompanha o sorriso Monalisa, que não é sim nem não. Viver não nos permite desprezar os aeroportos de onde partem os aviões para os quais o coração nos “comprou” bilhete. Neste tanto do que sou, e do que quero, existirão detalhes mais modernos ou não, opções aceites ou não pela maioria, mas sou assim, e, legitimame

Hoje sinto-me imortal...

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Há dias em que nos despertamos com a sensação de sermos imortais, e outros dias em que colocamos uma bateria de lua no bolso, devidamente guardada da noite, por temermos que se nos fuja a claridade. Da mesma forma, há instantes em que sentimos a voz e os braços de todos os santos do Céu apoiando-nos num caminhar tranquilo por entre lagos e flores, e outros em que acreditamos que Deus se despediu de nós para ir acudir à Austrália. Sempre que Novembro nascia, íamos a Borba à feira comprar as botas, as mantas coloridas e os agasalhos, inaugurando oficialmente a época do frio, contrariado também com castanhas e bolotas assadas. Nessa altura eu acreditava que o frio tingia de negro as mãos das mulheres, quando ao fim da tarde me cruzava com elas na mercearia ou na padaria, antes de aprender que o tom que lhes carregava os dedos era consequência de um dia passado na apanha da azeitona, um dia que começava muito antes de clarear, quando a geada oferecia à Terra uma película vítrea

Janelas com vista para o sol…

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Quando um colega de um país que não Portugal, se senta ao meu lado na mesa onde iremos trabalhar em grupo durante esse dia e saca da pasta, um coelho de peluche que coloca em cima da dita mesa, fazendo uma foto com o telemóvel antes de o devolver imediatamente à pasta, o meu ar de curiosidade destravada terá motivado uma explicação. - Sempre que venho trabalhar para fora, o meu filho pequeno, não podendo acompanhar-me, entrega-me o seu boneco preferido para que eu o sinta mais perto e tenha menos saudades. Todos os dias lhe mando notícias do seu coelho. Ainda existe amor à superfície destes dias cinzentos. Amor e poesia, que são afinal a mesma coisa. Com um imenso prazer, recorto este momento e colo-o em destaque sobre a minha “agenda”, como fonte guardada no bolso de quem às vezes tem de atravessar ou provar o deserto. Depois, é à beira de instantes assim que posso garantir a um amigo que o Céu lhe devolve o seu anjo pela madrugada, ou consigo alinhavar três versos (daqu

As contra-indicações dos beijos dos avós…

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Não me recordo se algum dia alguém me ensinou a beijar os meus avós naquela idade precoce da qual não guardo qualquer memória de mim, mas tenho quase a certeza que não foi preciso, porque os beijos são detalhes que fluem naturalmente entre quem se ama. Recordo-me sim de ter quatro anos e ter caído da escada pela pressa de ir beijar o avô Joaquim que chegava do campo com um saco de limões, e lembro-me bem do aroma dos xailes das minhas avós e tias-avós, que nos ofereciam os seus braços para adormecermos felizes, sempre que vinham a nossa casa passar o serão. Se eu visse um avô vinte vezes por dia teria de dar-lhe vinte pares de beijos, e nem mesmo assim, seguindo essa regra do coração, eu consegui evitar esta presente saudade de já não os ter. Os beijos, os afagos, os olhares doces, “o meu Quim” repetido mil vezes com orgulho... semearam o melhor que possam encontrar em mim. Qualquer face lunar é da minha inteira responsabilidade. Durante um programa de televisão emitido e

Músculo e água de fé...

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Sempre que o verão partia e a aragem nos convidava a revisitar os guarda-fatos em busca de “abafos”, fechavam-se os postigos das portas e acendiam-se as primeiras braseiras, ao redor das quais ateávamos a conversa nos serões que cumpriam a mesma sina do tempo de então: não existia pressa. Nas prateleiras altas dos armários da cozinha havia conserva de tomate e taças de compotas de ameixa, abrunhos, melão... para lá da inesquecível marmelada. Aprendi há muito a tomar o melhor do verão e a guardá-lo de forma eficaz, para poder cruzar o inverno sem deixar de sentir o sol. O tempo agora é bem diferente, em tudo e também na pressa, mas quando a semana me obriga a atravessar a solidão, vejo sempre que trouxe comigo garrafas de água das melhores fontes que beijei, trouxe abraços guardados em memórias e retratos, e não há fome que me atormente, porque trouxe na mochila o pão que respira entre os milhões de versos que colhi dos dias claros. Nada nem ninguém é breve ou desprezível,

O essencial é a liberdade...

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O caminho que trouxemos desde o pranto até à liberdade está pejado do ferro oxidado das algemas que nos prendiam as mãos e os pés, e ainda guarda o cheiro fétido dos cadáveres da gente morta a tiro de opressão, gente mártir mas enorme, de quem a alma voou atando-se à nossa por um nó ousado e rebelde de marinheiro. Passaram muitos anos, e talvez o vento tenha arrastado terra, e a chuva tenha plantado ervas e flores sobre esses despojos dolorosos, oferecendo-lhe uma enganadora face de paraíso. Mas eu não quero e não irei voltar a pisar esse caminho. Aqui onde moramos temos janelas que trazem a brisa do mar, temos o canto livre dos poetas e, por mais desarrumada e suja que esteja esta rua onde moramos, ninguém nos obriga a negar o sangue e o amor que trazemos na alma. Sim, essa mesma alma que atámos pelo sonho à alma dos heróis. Poderemos varrer esta rua com ramos de giesta, criaremos novas flores para os vasos das janelas, convocaremos os cantores, os artistas, reinven

Viagens improváveis...

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Sigo imerso na leitura dos jornais e nos jogos de palavras e números, enquanto a carruagem rasga o estio subindo a norte. Só por alturas de Espinho reencontro o mar, deixando-me atrair pelo sol e permanecendo à tona, consciente, até cruzar o Douro e chegar ao Porto. Numa manhã de domingo e apenas com um livro e um jornal debaixo do braço, passageiro sozinho num comboio a transbordar de turistas e malas de viagem, eu vou ao encontro de um almoço perfeito de poetas e de uma tarde que poderá ser muito… ou quase nada. O senhor José aproximou-se da mesa pequena onde decorria a minha sessão de autógrafos na feira do livro do Porto, tem oitenta e dois anos e estava acompanhado pelo filho. Foi ali de propósito para encontrar o homem que escreve aquelas palavras que lê nas manhãs do Facebook . Não foi fácil encontrar-me, mas, finalmente, ali estávamos nós frente a frente por entre girassóis na lua e a promessa de um livro de poesia que será publicado em breve, e de um outro que segui

Viver...

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Viver é um compromisso de honestidade de mim para comigo, e tudo o mais são jogos de sombras. Gosto muito do mês de Setembro porque ele sempre me ensinou a renascer nos cadernos com folhas imaculadas, nos lápis por afiar e nas canetas de feltro ou nos guaches por abrir. Se um novo ano começa inevitavelmente em Janeiro, tenho sempre a sensação de que a vida nova que ele promete só se cumpre bem mais adiante, em Setembro. E cumpre-se nas palavras novas e nos desenhos conquistados aos diferentes saberes inscritos num horário que reinventa o tempo para nos tornar “sábios” no encalce de novas eras. O Outono é a minha estação preferida por entre o grito escarlate das romãs e o salto das castanhas, que abandonando o ouriço nos vêm contar histórias as serão. Dizem que o Outono nos deprime, apagando a luz intensa com que o verão nos beija. Talvez isso fosse verdade se o sol que importa não fosse coisa que vem de dentro e que espreita a rua pelo olhar, como se ele fosse um posti

A bordo da Terra...

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Entretido a brincar às escondidas com o sol, eu sou um rapaz que viaja a bordo da Terra, sempre em busca do universo. As estrelas são a gente que chega e que me abraça, deixando no espaço ao redor mim, e no pensamento, as histórias que me alimentam com a eficácia e o sabor do melhor pão de trigo. Na mochila, quando partem, levam palavras que não vêm nos dicionários, porque são escritas segundo a linguagem do vento, e são sinónimos imprevisíveis da liberdade.   A bordo da Terra, nós somos a varanda bonita e cheia de flores onde se cruzam milhares de rotas dessa tanta gente que como nós anda em busca do universo, astronautas informais na senda das estrelas e dos sonhos, sem outro mapa que não seja o da sua vontade. Talvez um dia eu adormeça, vergando-me ao cansaço, e então rogarei ao vento que me envolva na rama das árvores, na brisa salgada dos mares e no pó dos caminhos, tornando-me chão firme para quem vier em busca deste mesmo sonho que é o meu. Chão firme e quiçá um

A minha família é a casa onde poderei sempre andar descalço…

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A minha família é a casa onde poderei sempre andar descalço, porque nada magoa, em nada se tropeça, e nunca há o risco de escorregar e cair no chão. Com janelas de parapeitos altos e generosos, estão dispensados os telescópios e os binóculos na hora de sentir o céu e palpar todos os horizontes. Mas a minha família tem ameias e torreões fortes, ao jeito de um castelo imenso e transparente, não existindo, para mim, um melhor abrigo. Na minha família cultiva-se a fé, e foi lá que aprendi a rezar: - Menino Jesus vamo-nos deitar, esperanças em Deus que nos virá salvar. E ainda hoje, muito cedo pela manhã, eu escrevo versos de amor e liberdade enquanto a minha mãe percorre o terço. O sussurrado tom onde lhe perceciono as Ave Marias é como um vento que me beija e me levanta no ar, saindo para voar desde os parapeitos das altas janelas, algures entre a ousadia e a segurança. Na minha família, o amor, assim como tudo o mais que é importante, não precisa dizer-se sob a frustrant

Estas noites em que se acendem as luzes…

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Nas noites em que nos sentimos especiais, puxamos os luzeiros do céu para bem mais perto, acendendo as luzes desenhadas e garridas do arraial. Depois caminhamos de amigo em amigo, porque o coração calipolense centrífuga o universo, concentrando-nos numa praça com chão de terra, mas onde não há tempo para mastigar o pó que se levanta por entre os nossos pés. As bocas estão definitivamente empenhadas nas palavras, no riso, nos padres-nossos, nas farturas e na ginja, porque de tudo isto se compõe a vida nos seus dias mais preciosos. Jamais importará quem sobe ao palco para cantar, ou se a rifa já se modernizou e trocou uma garrafa de Anis Escarchado por uma bugiganga qualquer comprada nas lojas chinesas. Tão pouco importa se a banda que atua no coreto já puxou o pimba para o repertório... Nas noites dos amigos só eles importam e só eles nos fazem falta, na certeza de que ter uma terra é ter uma casa com paredes de afeto tecidas pelos olhares, e janelas generosas com vista

Eu sou corrupto e o Eusébio nunca existiu

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Eu, corrupto me confesso, sem pudor e sem qualquer laivo de arrependimento: o equipamento do Benfica que ofereci ao Fábio no natal do ano passado já foi o segundo, reforçando dessa forma o benfiquismo do filho dos meus amigos Manuel e Ana, que não se interessam absolutamente nada por futebol. É verdade, comprovada corrupção ativa, com a agravante de a praticar em prol de um clube de bairro, de base popular e de gente dita vulgar e adepta do garrafão de vinho. Eu também sei que o Benfica nunca existiu e que é a maior mentira de Portugal. Eu sei que todos os nossos títulos em todas as modalidades são injustos e são fruto de uma ilusão sustentada, entre outros, pelo ditador Salazar, que chegou ao ponto de inventar o Eusébio, uma espécie de Padrão dos Descobrimentos que sabia chutar com os dois pés. Eu sei tudo isso, mas quem poderá ir contra o meu coração? O amor será sempre irracional e talvez por isso, não tenho quaisquer dúvidas em confessar-vos que se algum juiz um di

Regressar à essência...

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Como explicar que entre o copo de gin , onde reluz uma imensa casca de laranja, e a lua cheia que se insinua à noite de Lisboa, o meu olhar reza quando encontra o teu? Como fazer entender que a “divindade” do corpo se prova neste estremecer em harmónio que lhe oferece um beijo de amor? Estranhamente, os Homens procuram a “Luz do mundo” nas caves mais escuras do universo, como se o martírio fosse o caminho mais eficaz e lógico para chegar a Quem nos ensinou a ressuscitar por entre as madrugadas. Veste-se a morte mesmo quando o coração nos grita vida, na renúncia de acreditar que o Céu não é o destino para quem morre e se “mata” assim, o Céu é hoje e aqui, porque Deus brilha no sorriso de quem está vivo e imprime ao corpo a mesma dimensão de vida que lhe mora na alma. E quem vive nas cavernas tropeça na sua própria cegueira, no proibido e no perverso, sem temer nada porque nada se vê. Muito se tem falado ultimamente de pedofilia na Igreja Católica envolvendo às vezes perver

As rugas e a lua cheia...

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Por instantes pensei que o passeio de Carlos da Maia e João da Ega ardera definitivamente com o Chiado, permanecendo apenas nas palavras escritas de Eça de Queiroz e nas memórias das tardes em que eu próprio imitara os heróis de “Os Maias” no meu trajeto muito pessoal entre a Bertrand e a Ferin. Perante o coração de uma Lisboa queimada era difícil imaginar que tudo voltaria a ser como antes, talvez porque facilmente nos esquecemos que os Homens, as árvores e as cidades são iguais na hora de se reinventaram, perfurando o chão das cinzas com a força de novas raízes e alicerces. Aproveitando a brisa do fim da tarde, ontem mesmo subi como quem voa pelos telhados de Lisboa, para espreitar a lua num terraço do Chiado. A lua brilhará sempre sobre todos os despojos do fogo, desmentindo que as cinzas sejam o destino de uma cidade... e dos Homens. As rugas são ruas que nos marcaram a face a ponto de dor, mas que se desmancham quando sorrimos com a mesma convicção da lua cheia.

Apontamentos de um jantar no Gerês…

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O fim da tarde oferece à sala de jantar a luz de Vermeer , mas um olhar mais atento sobre os gestos e os nossos olhares denuncia Visconti , cuja câmara não deverá andar muito longe dali. Todos nos cruzamos durante o dia entre a fonte de águas medicinais, as salas de leitura, o elevador, o café e a papelaria onde compramos os jornais. Aos poucos e por muito poucas palavras, vamos conhecendo a história de cada um. Os que somos reincidentes, já nos conhecemos dos verões passados. O Skype ligado num i-Pad na mesa ao lado da minha desmente as paredes, os gestos e a luz, trazendo a datação do repasto para o século corrente, tudo porque o casal na casa dos cinquenta não resiste a falar com a filha emigrada. Tanto da saudade mora nos lugares deixados vazios à mesa do jantar. Para além desta conversa que vamos escutando, mas sem prestarmos grande atenção, dos diálogos de cada mesa só emergem algumas frases nos instantes em que todas as outras se cruzam no silêncio. “Nós nunca bamos ber

Os dias de Agosto...

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Quando em criança me obrigavam a caminhar para um sítio desagradável, eu desejava que a rua se tornasse infinita, quiçá dando sete voltas ao planeta, para nunca mais lá chegar. Alinhado comigo, o meu irmão não conseguia adormecer na noite que antecedia uma saída agradável ou uma viagem. Ele a querer que o sono lhe encurtasse a noite, e nada de o conseguir. Por não querer nunca ver o fim ao tempo, não usei relógio durante a semana que passou, percorrendo sem pressa os dias que decorrem entre a primeira toma de água, algures quando o sol já beija a montanha em frente à janela do quarto, pelas 7.30 da manhã, e o adormecer, que é cedo e após algumas páginas acrescentadas à leitura de um livro. Durante o dia converso com os meus pais reencontrando velhas palavras do léxico Alentejano (pirrónico, escampar, muginar, aventar, marouvale), e pondo em ordem as histórias que ficaram por contar durante o ano nas nossas conversas telefónicas noturnas, por esquecimento ou falta de tempo.

A esquerda e a direita...

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Eu tenho amigos de esquerda que afirmam que a honestidade é um exclusivo da sua área política. Por acreditarem convictamente nesse pressuposto, alargam o conceito de honestidade até ao ponto em que não trabalhar e fazer vida de luxo à custa de amigos é a coisa mais natural do mundo. Mas eu também tenho amigos de direita que consideram que a guerra colonial foi uma oportunidade extraordinária para que uma geração de homens pudesse ir conhecer África, afirmando que as mortes ali ocorridas, em número desprezível, foram consequência de acidentes de viação. Uns e outros defendem cegamente as suas damas até à exaustão, não se dando conta da linha do ridículo que às vezes pisam de forma descarada, aplicando-se em duelos que eu até poderia considerar ideológicos se tivessem por raiz algum ideal por entre a teimosia. Como pude observar ao longo da semana que passou, estes conflitos bacocos situam-se ao nível dos “Jogos sem Fronteiras”, trazendo a glória por um instante mas não deixando n