Hoje sinto-me imortal...



Há dias em que nos despertamos com a sensação de sermos imortais, e outros dias em que colocamos uma bateria de lua no bolso, devidamente guardada da noite, por temermos que se nos fuja a claridade.
Da mesma forma, há instantes em que sentimos a voz e os braços de todos os santos do Céu apoiando-nos num caminhar tranquilo por entre lagos e flores, e outros em que acreditamos que Deus se despediu de nós para ir acudir à Austrália.
Sempre que Novembro nascia, íamos a Borba à feira comprar as botas, as mantas coloridas e os agasalhos, inaugurando oficialmente a época do frio, contrariado também com castanhas e bolotas assadas.
Nessa altura eu acreditava que o frio tingia de negro as mãos das mulheres, quando ao fim da tarde me cruzava com elas na mercearia ou na padaria, antes de aprender que o tom que lhes carregava os dedos era consequência de um dia passado na apanha da azeitona, um dia que começava muito antes de clarear, quando a geada oferecia à Terra uma película vítrea e muito dolorosa.
Nas ruas de Roma e na noite de Todos os Santos, eu caminho só e entretido por uma conversa entre mim e a memória, sentindo saudades das botas de Borba que o avô Joaquim untava com sebo de Holanda, porque as moderníssimas sapatilhas New Balance não garantem uma boa aderência ao piso humedecido pelas chuvas dos últimos dias, e sinto correr o risco de me estirar ao comprido algures entre o Panteão e a Fontana di Trevi, numa performance noturna com muito pouco do glamour de Visconti.
Hoje sinto-me imortal, mas reparo ao colocar as mãos nos bolsos, que trouxe comigo pedaços de mil luas, agrupados em lanternas que vou acendendo aos poucos e quando o tempo estremece. Deus persiste no meu silêncio, muito mais do que nos sinos das catedrais de Roma, e os Santos que me apoiam, adormeceram há muito, mas deixaram ficar comigo as suas mãos enegrecidas pelo frio e pelo pão que alimenta todas as candeias.


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