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A mostrar mensagens de setembro, 2013

A manhã cinzenta de um certo sebastianismo

O dia amanheceu cinzento, cor de chuva, e com um nevoeiro que deixa feliz a quem consiga ver para lá de cem metros à frente do nariz. Sentem-se no rosto, as gotículas que constituem estas nuvens descidas à terra para nos envolver e nos predispor para a cama ou para a depressão. Como a primeira opção não é hoje possível… A televisão da pastelaria reproduz a noite de contagem de votos das eleições de ontem. O rádio do carro continua a dissertar sobre o mesmo tema: ü   A lista patrocinada por Isaltino Morais ganhou as eleições para a Câmara de Oeiras. O presidente eleito, Paulo Vistas, afirma que esta é a vitória da saudade e os apoiantes vão festejar a Câmara Municipal para a porta da prisão da Carregueira onde o ex-autarca e inspirador da lista está preso por corrupção. ü   José Sócrates comenta os resultados em directo na RTP e aponta os caminhos para o país não só ao nível local mas também à escala nacional. Um pouco de memória e talvez se lhe aclarasse a noção do ridículo.

Votar ou não votar… eis o negócio!

Tenho uns amigos que uma vez foram assistir à representação do Hamlet, de William Shakespeare, por uma companhia de teatro originária do Brasil que interpretou a frase mais famosa da peça com a brilhante tradução: - Ser ou não ser… eis o negócio. E o que era sério na tragédia que conta a história do príncipe da Dinamarca passou num instante a ser cómico. Mas a peça continua e continuará sempre a ser uma referência universal. Recordei-me deste episódio a propósito das eleições autárquicas de amanhã e da penalização que muitos de nós achamos dever aos políticos por tudo, e sobretudo pelo estado miserável a que a sua incompetência condenou o Estado em sucessivos governos envolvendo diferentes forças políticas. E digo políticos e não o regime porque como na peça de Shakespeare, o problema reside nos intérpretes e não no sistema em si, no regime democrático em que afortunadamente vivemos depois da revolução dos cravos. A não ida à cabine de voto penaliza pois injustamente o reg

O Dia Internacional de Qualquer Coisa

Ainda não perdi a esperança de um dia acordar e ouvir nas notícias de que esse despertar me tinha transportado para comemorações tão estranhas como o Dia Internacional das Mulheres Operadas à Vesícula, o Dia Internacional das Mulheres que usam Unhas de Gel, o Dia Internacional dos Homens Circuncidados, o Dia Internacional dos Homens que Conduzem Carros a Diesel, o Dia Internacional dos Amigos das Pastilhas Elásticas, o Dia Internacional da Mousse de Chocolate, o Dia Internacional das Pessoas que gostam da Cristina Ferreira ou o Dia Internacional dos Comedores Compulsivos de Pastéis de Bacalhau. É que há dias para tudo, para todo o tipo de causas e circunstâncias, e hoje, de uma assentada, é Dia Internacional dos Ex-Fumadores, Dia Internacional do Coração e Dia Internacional do Farmacêutico. Como nunca fumei e porque sou um romântico por convicção e um boticário por profissão, estou então abrangido pelas duas últimas comemorações. Do coração confesso que trato todos os dias. De u

As histórias contadas por um velho tecto

Na casa da tia Maria e do tio João à Rua de Santa Luzia, aquela que tinha no quintal um limoeiro que dava frutos todo o ano e cujo tronco saía de um canteiro que cheirava sempre a salsa, hortelã ou coentros, temperos e cheiros dispensados do frigorífico pois estavam ali sempre à mão para serem colhidos, existia um quarto que à minha escala de então era gigante, comportando três camas de ferro forjado dispostas de forma paralela. O quarto tinha vista para o limoeiro e para toda a Vila para além dele e até à muralha do Castelo e às Portas de Évora. Eu dormia na cama mais pequena que era simultaneamente a mais baixa, e visto desde ali, o tecto que era inclinado e que estava pintado em tons de amarelo num contraste assumido com as paredes brancas, ainda parecia mais alto do que efectivamente era. No Alentejo chamamos tectos de madres, a estes que têm os rectângulos de laje seguros por traves de madeiras devidamente e estrategicamente colocadas. Os anos e as camadas sucessivas de c

As cambalhotas acrobáticas

Ontem depois do almoço assisti à conversa entre duas colegas em que uma convidava a outra para um passeio digestivo nas redondezas do edifício, tendo então recebido como resposta: - Hoje não posso. Com estes sapatos não consigo andar na rua. Olhando atentamente para os quinze centímetros devidamente compensados, reparo que os sapatos, na versão escadote e um verdadeiro doping da altura, não permitem andar sobre qualquer outro piso que não soalho ou alcatifa, sendo para além disso um exercício pouco recomendável para quem sofra de vertigens. Os sapatos, que deixaram de ser um adereço para facilitar o acto de caminhar e passaram a ser um acessório de moda e uma forma de “esticar” as ladies, são afinal e tão-só um pequeníssimo exemplo das alterações verificadas nos últimos tempos na lusa terra em que nada parece igual ao de antes. Mesmo sabendo que desde o século doze, quando o D. Afonso Henriques “bateu” na mãe, há na zona de Guimarães uma propensão para sovas inéditas, não dei

O tempo oferecido pela generosidade do Outono

Não fosse a denúncia feita pela ausência de sol à hora do jantar e julgaríamos continuar no Verão a viver os dias quentes que pedem praia. Mas chegou o Outono e agora, praia só ao fim-de-semana e na melhor das hipóteses. O regresso ao trabalho já ocorreu para a maioria das pessoas afortunadas que o mantêm, e os estudantes já estão “empenhados” nas actividades lectivas. As férias, continuando a ser grandes, são agora muito mais pequenas do que antes, e nós, os que não sabíamos o que era ter na escola computadores com acesso à internet, uma mediateca, microondas para aquecer os folhados de salsicha, campos relvados para a prática do futebol ou água quente nos balneários do ginásio, beneficiávamos de um período de mais ou menos um mês que nos permitia fazer tranquilamente a transição entre a azáfama do descanso e das festas, e a emoção do regresso à escola. Em Vila Viçosa, no jardim junto ao lago, à sombra dos plátanos de onde caiam infinitas folhas com matizes de amarelo e castanh

Bater à porta da guerra

Ao estilo do Raul Solnado, eu um dia também bati à porta da guerra. Não o fiz por vontade própria pois sou e sempre fui um pacifista sem jeito sequer para matar formigas, fi-lo porque em cumprimento de um dever (então, obrigatório) de cidadão do sexo masculino, vi um dia afixado um edital na Câmara Municipal de Vila Viçosa com a seguinte informação: "Marcha para o Regimento de Infantaria de Faro, Destacamento de Tavira, o Soldado Cadete..." E eu marchei (e não vale rir porque foi no verdadeiro sentido do termo) com mais 119 militares que por motivos de estudo fomos adiando a nossa incorporação. Faz amanhã precisamente 22 anos e também era uma segunda-feira. Já com 25 anos de vida cumpridos e uma proeminente barriga, lá fui eu então correr para as salinas de Tavira, um sucesso pela manhã quando saiamos do quartel de calção curto e camisola de alças, e púnhamos as turistas a tirar-nos fotos. Acho que foi a única vez na vida que literalmente fiz parar o trânsito. Tính

Um beijo e finalmente… Lisboa

O avião rompe as nuvens que vistas do alto se assemelham a um soalho de algodão, e por entre o verde que o lusco-fusco ainda permite vislumbrar mas que por esta hora já está salpicado com milhões de luzes. Há um contorno desenhado pela água, pelo Tejo no seu beijo enamorado à lezíria que por ele se faz o mais fértil dos campos. E do céu, seguindo o Tejo, em breve o meu olhar beijará Lisboa e o coração me dirá que cheguei a casa. Não há distância que imponha impossíveis a um Português, mas nunca haverá para nós maior alegria do que esta de voltar, de matar a lusitana saudade ao ritmo dos passos por sobre a calçada que é cúmplice dos nossos dias. E será então Lisboa a beijar-me, a mim, com a brisa fresca que vem do rio e rima com o mouro fado, tendo o luar como testemunha de um eterno e profundo amor. Os beijos de Lisboa ao jeito dos teus beijos…

O outro lado do glamour

Em Milão, a semana da moda feminina tornou intransitáveis as ruas do centro e é difícil fotografar um monumento ou um edifício sem captar os monitores gigantes que de forma ininterrupta passam os infinitos desfiles. As pessoas, como que inebriadas pelo luxo e pela cor, param e caminham ao estilo de zombies vagueando por entre uma multidão de iguais criaturas e tornam quase missão impossível a passagem de alguém que não esteja ali para ver as montras. Há focos de luz e música em cada esquina. A coincidência desta semana com o congresso em que participo “patrocinou-me” em cada manhã, o pequeno-almoço com um grande grupo de manequins alojadas no mesmo hotel que eu. Manequins a quem tenho dificuldade em chamar mulher ao conjunto constituído por um rosto de menina e uma estrutura óssea despojada de carne esticada até aos arredores dos dois metros, sem mamas, sem rabo e numa claríssima aproximação a um cabide onde alguém pendurará as criações dos grandes costureiros. Caminhando lent

Quinze anos

O melhor que têm os dias é a imprevisibilidade dos momentos que nos podem mudar a história. Por ela, puro acaso ou mão de Deus segundo a fé, se arquitecta a esperança que alimenta até o mais triste e desesperado dos Homens. Tinha trovejado há pouco e a chuva tinha vindo dar à cidade em brasa, o inédito e agradável cheiro da terra molhada. Era domingo e nada fazia prever que não fosse tão só e apenas, mais um domingo. Mas este domingo contrariou a solidão de todos os outros: tu chegaste para marcar um antes e um depois de ti indiscutivelmente mais feliz. As ruas desertas de gente receberam os nossos passos paralelos e a bênção de uma conversa, rima de duas línguas na poesia de uma língua só que desde logo fizemos nossa. Por ela se escreveram os planos, o desenhar dos anos à luz da paixão e na inspiração de um inédito amor que nos encheu os dias de beijos, abraços e cumplicidades. Os nossos dias felizes depois desse imprevisível mas tão perfeito primeiro olhar. Pela força

Um fim de tarde em Milão

O dia de muita azáfama acaba por me oferecer um fim de tarde tranquilo e com tempo para um café com vista para a Duomo e para o seu esplendor gótico, herança de um tempo em que as cidades se afirmavam pelo poder das suas catedrais. É já muito ténue a luz do sol mas a noite ainda não tem suficiente força para que brilhe intensa a lua que hoje se anuncia cheia. É por isso à luz dos candeeiros já acesos que vejo desfilarem as filhas (e as netas) das “Sophia’s Loren” carregadas de sacos de papel timbrados com aquelas marcas em relação às quais nós, pobres mortais, só temos o poder de oferecer o olhar no admirar das montras. Não traíram a beleza das avós estrelas de Hollywood e continuam lindas as mulheres italianas. Nada têm a ver com os esqueléticos cabides de um metro e noventa que em semana da moda tomaram o pequeno-almoço comigo no hotel, se é que pequeno-almoço se pode chamar a dois grãos de cereais despejados para um iogurte natural que é tragado de forma lenta e asténica junta

O cortejo dos “distraídos” por entre a gente descontente

O olho gigante do Big Brother segue-nos para todo o lado e, apesar de me incomodar, não estranho receber uma mensagem no telemóvel vinda da ZON durante as férias dizendo que há cerca de um mês não ligo a box, predispondo-se a dita fornecedora de serviços na área do audiovisual, a prestar todos os serviços de manutenção que o equipamento possa exigir. É ainda a FNAC que me convida a comprar "acessórios culturais" quando estou muito tempo sem usar o cartão, ou a Nespresso que sabe pelo número de cápsulas que compro, quantos cafés já preparei, e que provavelmente a máquina já necessita de uma revisão. Quando entro no sítio da Amazon na internet, para além de me tratarem pelo nome e me saudarem, chamam-me sempre a atenção para os livros de marketing farmacêutico mais recentes ou para algum CD ou DVD da Eurovisão que chegou às bancas nos últimos dias, numa demonstração de Customer Relationship Management , em Português, Gestão da Relação com o Cliente. Estas situações pro

O que é um poeta?

O que é um poeta? Um menino? Um insurrecto? Um tonto alucinado? Ou um inquieto e irracional cavaleiro à conquista de impossíveis? O que é um poeta? Um alcoólatra? Um inconsequente? Um sonhador? Ou um excêntrico sem domínio sobre uma força que o faz querer ser diferente? O que é um poeta? Um artífice de palavras? Um mestre de sensações? Um rei? Ou um triste e errante vagabundo entregue à conquista de uma simples côdea de pão que lhe alimente o ser? O que é um poeta? Talvez tudo isso Ou Apenas eu Eu Querendo-te assim Infinitamente Tão vazio de mim E alimentando-me do céu que me dá o azul do teu olhar Descoberto na noite tão fria em que a neve cobriu a serra A noite do amor A noite de ti A noite Afinal De toda a poesia

Um chocolate ao estilo de coca

Há dias que parecem ter um guião escrito pelo nosso maior inimigo. De manhã ao ligar a ignição do carro apercebo-me de uma estranha luz amarela no placard que me leva a consultar o glossário e me indica que o carro tem excesso de gases. Não me faltava mais esta. Consultado o "médico" recebo a confirmação do diagnostico e a prescrição. O problema não é grave e devo ir para a auto-estrada fazer 30km a 120km/ hora mas na quarta velocidade. Como tenho de ir para o aeroporto resolvo ir pela CREL e faço desta auto-estrada um verdadeiro Aero-OM para o veículo ao mesmo tempo que eu faço figura de um inexperiente recentemente encartado. Faço ideia dos nomes que me chamaram ao ver-me acelerar o carro ao jeito de quem vai levantar voo. Chego ao aeroporto já em cima da hora e “acelero” então para despachar a mala. A fila é longa mas lá resolvo o assunto a tempo de correr para a segurança onde me mandam para uma outra fila que não avança. Passado um quarto de hora e após cr

“Eu quero que sejas muito feliz”

A manhã solarenga de domingo faz com que a auto-estrada pareça um caminho exclusivo desenhado para mim. Sigo pelo asfalto da forma que mais gosto, sem rádio e sem música, apenas com os meus pensamentos. De repente vejo algo na estrada à minha frente, mudo de faixa, abrando e vejo um boneco. Num carro à minha frente alguma criança chorará por esta queda fatídica que vitimou o seu companheiro de brincadeiras. Mais à frente num viaduto, um adulto e uma criança, os dois equipados à ciclista, observam divertidos o pouco movimento da auto-estrada. Parecem felizes por finalmente terem a possibilidade de ver passar um carro. Vou para Fátima ter com uns amigos. Ao fim de muitos anos a Festa dos Capuchos não coincidiu com o Encontro Nacional dos Convívios Fraternos e vamos participar na eucaristia de encerramento. Fui ali pela primeira vez há 32 anos e a última há precisamente 23 anos. Muita vida passou entretanto ao ritmo do tempo, e ao jeito da minha viagem desta manhã, quantas ilus

É poesia o que guardas entre os dedos

É poesia o que guardas entre os dedos Sonetos Rimas de estranhos versos sem palavras O embrião de um perfeito gesto que se solta Quando a tua mão Louca de amor Se entrega à minha Atrás de nós A montanha Granito levado ao colo pela Terra Que se eleva Imponente Num inédito beijo ao céu É a hora do calor Está acesa a brasa que desfoca o horizonte No dia de um persistente verão Que se estende muito para lá de Agosto Quando as uvas já andam às costas dos Homens E rebentam grenás As romãs Por entre a folhagem verde clara das árvores que as sustentam É sexta-feira de um dia treze E a tarde que dizem ser de azar Canta connosco ao primeiro toque da tua mão No triste vazio que carrego na minha É então o céu que desce e afaga a Terra Quando o coração sorri Alegre No doce imitar do grená das romãs É a vida O amor E afinal o tão simples instante Em que te dás E Em que soltas a poesia que guardas entre os dedos

Trevos de quatro folhas

Durante a minha infância sempre desejei mas nunca consegui ter uma bicicleta. Culpa do muito restritivo orçamento familiar com ares de premonição da troika. O Manuel, que não é o meu melhor amigo por um qualquer acaso, partilhava comigo a sua bicicleta para darmos umas voltas no passeio em frente ao Café Framar, mas quando todos os amigos resolviam ir buscar os seus veículos de duas rodas para passear nos caminhos ao redor da vila, eu ia para casa. Não me importava muito. A minha mãe era costureira, a casa estava cheia de raparigas que aprendiam a arte da costura, que eram em geral bem divertidas e que sempre me mimavam muito. Para além disso, a minha mãe sentava-me ao seu colo enquanto costurava na velha máquina Singer que trabalhava com um gigante pedal metálico e, ao ritmo dos fatos que ela produzia para as clientes, eu tinha um divertimento único galopando por todos os sonhos que a imaginação me permitia. Aposto que mais nenhum dos meus amigos teve o privilégio destas “v