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A mostrar mensagens de outubro, 2016

Nós somos da fé e da alma...

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Atrás de mim sinto as estrelícias a espreguiçarem-se ao sol, enquanto um velho tocando acordeão se aproxima da minha espera: o chá de jasmim teima e não arrefece. O som da moeda sobre o fundo da lata de atum de conserva vazia e já ferrugenta parece alinhado com a partitura transparente deste anónimo Piazzolla que hoje veio rasgar-me o silêncio. A cidade está cheia de Santos, criaturas improváveis, Anjos erguidos e caminhando assim entre as flores e o sol de um quase meio-dia decalcando letras sobre as folhas vazias dos poetas. Nós somos da fé e da alma, da eternidade e dos sepulcros vazios… Que importará o vento que disperse as nossas cinzas e a forma e o género dos corpos que dão gesto ao amor que sentimos? Nós voaremos sempre para lá do horizonte que os ciprestes desenham em pose triste, para lá do Gólgota onde as cruzes adormecem sob o pó dos entardeceres de Jerusalém. As capelas onde nos sepultarem encerrarão sempre uma ilusão do Deus que nos abraça em cada entardec

A nossa história...

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A nossa his tória poderá contar-se pelas ruas que pisámos. As calçadas são relicários, e por mais anos que passem eu jamais esquecerei os tons e as sombras do Outono desta "Sétima Colina" de Lisboa. A Maria Guinot cantara "Silêncio e tanta gente" na Eurovisão há pouco mais de seis meses, melodia que me assolava bastas vezes ao assobio quando passava ali pela Rua da Escola Politécnica e a D. Pedro V. Como se tivesse sido inventada para mim. Chegava de Vila Viçosa para estudar na Faculdade de Farmácia, e esse Outubro de 1984 ofereceu-me um quarto na sede da Fundação da Casa de Bragança, ao Príncipe Real. Em casa, o Senhor Francisco e a Dona Engrácia, colegas dos meus pais e até aí meus desconhecidos, iam tornando-se aos poucos meus avós, ao redor das horas que passávamos a conversar e confirmando a pura e perfeita genética dos afectos. No jardim sentava-se um velho estranho que nos dizia bom dia e conversava com quantos passavam, curioso por ver os livros

Berlim é afinal a própria vida…

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Quem vir o autocarro a passar assim tão ligeiro desde Oeste até à Unter der Linden poderá facilmente enganar-se no "preço" que tem a liberdade. Até o céu limpo e o vento que cobre de Outono o chão do Tigarten parecem querer calar esses dias em que o horizonte se esbatia em cinza, então rendido ao olhar que de tão triste nos salgava a face. E só o eco anónimo dos punhos doridos de tanto acudirem à alma, nos lembra aqui que a liberdade tem o valor infinito da fé dos Homens. E tem o “preço” de tantas vidas. Berlim é afinal a própria vida. Há muito que ruíram os muros onde viviam amordaçados os nossos abraços, e as palavras que desenhamos agora em prosa sob as tílias são as nossas, porque são o canto do peito embalado pela verdade. O amor que cede e se rende à vergonha é o suicídio por negação da própria vida. Um Homem que esconde os seus beijos é um moribundo mutilado cruzando a História. Nada é tão nosso quanto o amor e a liberdade, e enquanto cruzamos as

A doce liberdade dos meus passos…

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É preciso que a tarde nos prenda para aprendermos a saborear a liberdade dos nossos passos. Recordo-me do som estridente das fechaduras nas portas de ferro que se cerram automaticamente atrás de mim, o pátio sombrio rasgado por poucas janelas e muitas grades, os corredores longos onde consegue palpar-se a solidão... Deixei o telemóvel na entrada, não tenho relógio, venho sem tempo e com todos os meus livros; que nada mais existe para mostrar com tanta verdade aquilo que eu sou. Serão vinte homens que chegam aos poucos e me vão apertando a mão, preenchendo o espaço da biblioteca onde se sentam depois à minha frente. Vim passar a tarde ao Estabelecimento Prisional de Vale do Sousa, em Paços de Ferreira. "Porque é que fez tantos quilómetros para nos procurar, logo a nós de quem o mundo foge?" Gosto de conversar olhos nos olhos sobre aquilo que sinto e vou desenhando por palavras. E as pessoas são a alma, muito mais do que a história que a vida e as circunstâncias

MARIA DO ROSÁRIO

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Naquele Natal de mil novecentos e oitenta e quatro, na Quinta de Santo António, em Évora, persistia um aroma intenso a laranjas maduras no pomar próximo da varanda de cal de onde se espreita a cidade e o aqueduto. Íamos até lá depois do almoço, pisando o musgo dos carreiros e agradecendo o sol que brilhava para nos proteger do frio, “sorvendo” intensamente tudo aquilo que morava naqueles dias vividos ao jeito de quem reza. Sem nada entre nós e a liberdade, quem reza assim, num abraço, sente que o Céu lhe fala mais próximo e sem perder tempo; que a voz dos anjos usa sempre as palavras soletradas pelos lábios e a alma de alguém. Era pois o Céu a falar-nos ao ouvido na toada doce e suave que o campo do Alentejo sempre oferece ao falar. Quem tem fé nunca olha para cima, olha em frente; e das varandas de séculos caiadas ao sol de verão nascem castelos de onde ousamos sonhar-nos muito para lá do previsto e das cidades dos Homens que a vista nos oferecer. O Céu pedia-nos para se

Golden girls and boys

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A fé enleia-se no tempo e faz-nos perder na idade, qual fita que se desprende rebelde de uma cassete onde gravámos 50... Não, muitos mais, bem para lá de mil anos contados entre beijos, sonhos e risos. Ainda hoje sabemos de cor o caminho para o colo dos nossos pais que será eterno como o seu abraço feito de vontade e dado de improviso, o abraço que pinta as memórias de todas as cores mesmo que estejam gravadas no papel fotográfico a preto e branco. As mesmas cores das ruas onde brincamos até à hora do jantar quando as mães aparecem à janela e nos chamam sempre pelos dois nomes de baptismo: Joaquim Francisco, Júlia Albertina… O carrossel oito da Feira Popular roda no mesmo sentido do pião que a guita, certeira, atirou ao chão. Rodam como o LP de vinil que saiu no Natal com os sucessos do ano, e rodam do jeito com que vamos sonhando o mundo. Ali ao pé, uma boneca sorri como antes na prateleira do quarto onde mais tarde perdeu protagonismo para o poster dos Bee Gees ou do