MARIA DO ROSÁRIO


Naquele Natal de mil novecentos e oitenta e quatro, na Quinta de Santo António, em Évora, persistia um aroma intenso a laranjas maduras no pomar próximo da varanda de cal de onde se espreita a cidade e o aqueduto.
Íamos até lá depois do almoço, pisando o musgo dos carreiros e agradecendo o sol que brilhava para nos proteger do frio, “sorvendo” intensamente tudo aquilo que morava naqueles dias vividos ao jeito de quem reza.
Sem nada entre nós e a liberdade, quem reza assim, num abraço, sente que o Céu lhe fala mais próximo e sem perder tempo; que a voz dos anjos usa sempre as palavras soletradas pelos lábios e a alma de alguém.
Era pois o Céu a falar-nos ao ouvido na toada doce e suave que o campo do Alentejo sempre oferece ao falar.
Quem tem fé nunca olha para cima, olha em frente; e das varandas de séculos caiadas ao sol de verão nascem castelos de onde ousamos sonhar-nos muito para lá do previsto e das cidades dos Homens que a vista nos oferecer.
O Céu pedia-nos para sermos autênticos e em mil novecentos e oitenta e quatro até as rádios eram piratas como nós.
Rosário, lembro-me bem do quanto falámos e de quantas ruas rebeldes já a vontade nos ia desenhando no peito, por entre as laranjas e os orégãos que também nunca secavam por ali.
Há sempre um tempo em que o viço se apaga no olhar, secam as flores, para que possamos saborear o açúcar que o sol “escondeu” nos frutos. Porque nós somos muito mais daquilo que se sente do que daquilo que os outros possam ver de nós.
E para nós os dois, poetas, o tempo conta-se pelos beijos que demos, porque são deles que nasce tudo e todos os que importam. Não interessa se há ou não flores, se somos iguais, diferentes ou não, interessa apenas o mel que soubemos trazer para dentro dos dias.
Quanta vida desde esse tempo de meninos, e hoje que nos vamos espreitando nas palavras que escrevo e nas palavras que tu desenhas na rádio que eu escuto.
Num destes dias prometi escrever algo para ti, como faço algumas vezes para os amigos especiais. Juro-te que não sei se sou ou não escritor, ou se apenas e só um “mestre pasteleiro” que junta as letras naquele tom adocicado que as palavras podem ter.
Não procurei rimas nas sílabas mas tão só no orgulho de te ter como amiga e de sentir que a nossa vida é tanto mais importante quanto a nobreza das pessoas que se vão entrelaçando nela.
Muito obrigado.
Que bom ver-te assim uma mulher fantástica de alma grande, e saber como perduram os frutos dessa fé que adoça e que tomámos juntos do sol que abençoou o Natal do nosso ano de mil novecentos e oitenta e quatro.
Um beijo de parabéns.

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