Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2017

Os poetas sonham e tiram apontamentos…

Imagem
Já há muito que os sinos de Viena assinalam a meia-noite, e no quarto do hotel, com a cortina da janela não completamente corrida, eu pressinto o verde no semáforo dos peões quando as luzes dos carros que percorrem a Ringstrasse desistem por momentos de riscar a parede em frente à secretária. Recebi os golos do Benfica, escrevi e mandei os beijos todos que o coração ditou, e entreguei-me finalmente à hora do poeta, o silêncio sem pressa que se predispõe a ser tudo aquilo que eu quiser. A hora dos sonhos em estado vígil, que não se apagam nunca às mãos da madrugada e por capricho da memória; os sonhos que persistem. Quantos dias habitam na noite dos poetas… Amanhã será Carnaval e acender-se-ão luzes e máscaras sobre o racional sentido dos dias. Irão impor-se gargalhadas que morrerão depois amarfanhadas no terreiro onde as cinzas de quarta-feira se entregam ao vento. Como se a espontaneidade feliz morasse obrigatoriamente no inverso daquilo que somos e tivesse o prazo

O rapaz que não conhecia a letra “a”

Imagem
Quase no cimo da colina onde o moinho respira o vento que sopra do rio e onde as gaivotas vêm repousar ao fim da tarde; numa rua muito estreita, de casas com flores nas janelas e rodapé azul ou encarnado, vive um rapaz que todos acham estranho, apenas porque não conhece, e jamais conhecerá a letra “a”. Nasceu e será sempre assim, mas aquilo que é diferente não é forçoso ser coisa ruim. Igual a todos os outros rapazes, apenas busca novas palavras, perdão, novas expressões. Assim, em vez de dizer que gosta de sonhar, diz: - Eu pinto e invento o mundo. Ofereço-lhe um tom novo, que é só meu e que encontro bem no fundo. Não se esconde atrás de nenhum biombo ou véu, e para dizer que gosta de saltar, diz: - Eu gosto muito e brinco com o céu. Chama a mãe e o pai por mundo, esquece as horas e foca-se nos minutos, uma rosa é uma flor, o pão é sustento, uma bola é um esférico, um desafio é um jogo, e uma derrota é um tormento No outro dia, na aula de Português, a profe

As cartas de amor não têm data nem hora…

Imagem
Meu amor, Escrevo-te esta carta sem data e sem hora, porque a qualquer momento que a leias, tudo aquilo que de mim ela revela, persistirá inteiro; ou não fosse o amor, ele próprio, a eternidade… A minha vida está nos teus beijos, muito mais do que em respirar, e sobre o instante em que te conheci, eu construí a casa onde moro contigo; tomando, porém, o cuidado de numerar todas as pedras para assegurar que ela jamais se torne vulnerável ao tempo, e continue assim, eterna, cruzando comigo todos os dias do futuro. Na sua varanda que olha o mar, há sardinheiras que se acendem nas tardes de primavera, e que se entretêm a brincar com as gaivotas que redesenham o céu enquanto beijam o ar salgado. Recostado numa cadeira de assento de buinho, construída pelos meus avós, eu agarro o tempo como se fosse linho, e sobre ele, bordo letras azuis em versos de formas que só o desejo ensina. Pode ser que o silêncio me revisite enquanto estiveres longe, mas aí eu porei a mesa com essa toa

A minha casa com flores

Imagem
Trouxemos na mochila uma música de Einaudi , há muito em pausa, tal qual o beijo que pendurámos de um minuto triste e saliente, também lá muito para trás. Tomámo-nos as mãos para podermos repousar da longa viagem enquanto as nossas palavras se cruzavam com o Chá de Rooibos, que, em contramão, se deixava guiar pelos desígnios do desejo e, aos poucos, nos ia tomando os lábios que sorriam no mesmo tom rubro dos morangos. Quisera eu agora tocar-te assim como a chávena branca cumprindo o beijo roubado à pausa e trazido a tiracolo entre a "tralha" de tanta história. Talvez o amor não tenha mesmo contramão por não ter regra, sendo como é propriedade da alma e marinheiro livre a navegar pelo ímpeto dos sentidos; e talvez aquele minuto saliente não seja mais do que uma esquina com que a razão nos tentou querendo rasgar-nos o tempo de sermos nós. Depois reparo que o chá arrefeceu quando eu já repouso na casa que o teu olhar me oferece. Finalmente a minha casa. As pal

Ausência

Imagem
Nós sabemos bem que a ausência impõe a dor que persiste sobre a própria morte, tornando-nos cadáveres dentro do corpo consciente e que ainda respira. Aquele adeus ao fim da tarde depois de um chá frio no Chiado... O adeus é uma prece ardente ao tempo, e eu acreditei que ele seria capaz de me resgatar do teu mundo onde às vezes me sentia perdido. Julguei ser fugaz o silêncio que eu trouxe desse instante, e que a solidão se dissolveria aos poucos nas lágrimas das noites passadas de braços vazios. Pelo acaso, passei por ti às vezes nas ruas da cidade, e em todas ensaiámos ser desconhecidos, mas sempre por entre a doce traição dos olhares. Passaram-se anos, demasiados anos segundo a dor, o silêncio e a solidão que persistiram; até há pouco. Eu nunca deixei de estar sentado no teu mundo, ali sozinho bebendo as palavras de Eugénio e de Sophia nos livros que me deixaste à cabeceira. O amor quando nos nasce assim do sonho é impenetrável ao tempo. Nada mexe como numa ma

É hora de resistir

Imagem
A terra onde brincámos e de onde o limoeiro tomou alento e inspiração para namorar com o sol, guardará para sempre a memória dos traços que lhe oferecemos quando usávamos o pedaço de um tronco ou de uma pedra, para dar forma ao mundo que inventávamos. No nosso sonho não cabiam fronteiras. E a casa de tijoleira ao canto do bar da escola guarda ainda o eco dessas tardes em que o pudor sucumbia perante a força dos sentidos, deixando que andasse à solta, um jeito tão nosso e tão livre de falar de amor. Saltávamos as convenções e jurávamos jamais deixar que as fronteiras se interpusessem entre os nossos beijos. Quaisquer fronteiras. E o Deus que levávamos connosco para a margem das ribeiras onde o poejo se espreguiçava de odores pelas manhãs do sul, era afinal a expressão maior da vida e desse mesmo amor. Um Deus lembrado em palavras e acariciado por Padre Nossos, mas que jamais será bandeira de alguém ou de alguns, porque Ele é o universo inteiro. Acho que nunca no