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A mostrar mensagens de junho, 2020

As duas metades

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Sempre que um peixe e um pássaro se predispõem a falar, celebrando o verão, o mar deixa de ser tão inacessivelmente profundo e o céu aproxima-se, definitivamente, de nós. E quem diz um peixe e um pássaro pode dizer qualquer uma das nossas metades. Só apreciei a chegada da estação quente até há trinta e nove anos quando a minha avó Francisca partiu no primeiro entardecer de um verão que transformou junho num mês em brasa. Por mais que os dias se espreguiçassem, conseguindo que as nove da noite beijassem o sol, ainda que as saladas de tomate com cebola se insinuassem à mesa, ou que as conversas ao serão fossem feitas ao relento, sob a luz da lua, desapertando as memórias que o inverno fechara em baús, esvaziados agora para lá poderem caber os cobertores... Fiquei sempre dividido. As mais ou menos doces, e irrequietas metades de nós. A que se deleita e a que chora, a descrente e a que transpira de fé, a que gosta de partir e aquela outra, que insiste em ficar. Há muito em mim q

O músculo do coração

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Os abraços fazem músculo no coração, e daí até à força de conseguirmos construir pontes, vai apenas um pequeníssimo passo. De há muitos anos a esta parte, acho que desde que me conheço, propus-me olhar para a perspetiva positiva daquilo que a vida contém, abandonando qualquer outra, lunar e catastrofista, tão do agrado dos apóstolos da prudência, sempre munidos do “eu bem vos avisei”, ou do “não te rias porque não sabes o que estará para vir”, esta última, sempre que confrontados com algo indiscutivelmente positivo. O pessimismo é ácido e corrosivo, e os seus seguidores são placebos de gente, que trocaram as almas pelos lamentos, e leiloaram a esperança para comprarem um “respeitável” fato muito opaco. O pessimista é hipócrita e fraco, na salvaguarda de nunca ninguém lhe cobrar nada. Já os otimistas, passamos a vida a pagar a “taxa da insensatez”. Associado a esta apetência para saborear o “copo meio cheio”, habituei-me a olhar para a essência de cada pessoa, de cada circ

O abraço e a máscara

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Ainda que o tempo presente nos roube o desenho labial do sorriso, persiste o olhar, sobre as máscaras, para nos reconhecermos e nos beijarmos. Também dispomos da voz, devidamente filtrada e em êxtase asséptico, mas as palavras têm dispensa perante a tanta poesia que emana do olhar. E as mãos? E os braços? Sinto-os inúteis perante a impossibilidade dos abraços, ou então, é como se de repente, uma epidemia de fraturas nos tivesse empurrado para os domínios da ortopedia, sujeitando-nos em apertados coletes e cintas de gesso. E a primeira preocupação, sempre que encontramos alguém de quem gostamos, é certificarmo-nos de que nos mantemos suficientemente afastados, o que é demasiado estranho e contranatura. O simples ato de tomar a bica virou procedimento cirúrgico, tal a quantidade de álcool que exige a manipulação da máquina e da chávena. Abrir a porta de um prédio é um potencial gesto kamikase, só possível de contrariar por bênção da lixívia. O desinfetante ganhou à