O abraço e a máscara



Ainda que o tempo presente nos roube o desenho labial do sorriso, persiste o olhar, sobre as máscaras, para nos reconhecermos e nos beijarmos.
Também dispomos da voz, devidamente filtrada e em êxtase asséptico, mas as palavras têm dispensa perante a tanta poesia que emana do olhar.
E as mãos?
E os braços?
Sinto-os inúteis perante a impossibilidade dos abraços, ou então, é como se de repente, uma epidemia de fraturas nos tivesse empurrado para os domínios da ortopedia, sujeitando-nos em apertados coletes e cintas de gesso.
E a primeira preocupação, sempre que encontramos alguém de quem gostamos, é certificarmo-nos de que nos mantemos suficientemente afastados, o que é demasiado estranho e contranatura.
O simples ato de tomar a bica virou procedimento cirúrgico, tal a quantidade de álcool que exige a manipulação da máquina e da chávena.
Abrir a porta de um prédio é um potencial gesto kamikase, só possível de contrariar por bênção da lixívia.
O desinfetante ganhou à água benta por goleada, e na hora da missa, a manipulação da máscara destronou os gestos elegantes de incensar com o turíbulo.
Nos pastéis de Belém já não nos “limpam” a carteira, à entrada, perdidos numa fila imensa, mas lavam-nos as mãos, estendidas a um segurança munido com a arma deste tempo: a sacro santa lixívia.
Por tudo isto, este é um tempo de fronteiras ressuscitadas...
Mas o Homem não nasceu para viver entre muros, e ainda que todos sejamos diferentes dos demais, o cimento que pode usar-se como barreira, é o mesmo que poderá construir uma ponte, promovendo a riqueza que a perspetiva da complementaridade promove.
Persigamos o amor, ainda que hoje, expresso apenas, e só, pelo olhar, e entreguemos as mãos, os braços, e o todo de nós a uma fisioterapia da esperança, porque convém estarmos preparados e disponíveis para o outro tempo, melhor, que irá chegar.
Quando a primavera morar nos abraços, tal qual nas flores do jacarandá.


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