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A mostrar mensagens de 2020

Que o tempo avance...

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O tempo desacelerou, por instantes, para que eu pudesse sentir a verdadeira dimensão das horas, e a tanta vida que nelas se consegue ajeitar. A cidade partiu para sítio incerto, levando o rio com ela, deixando-me sozinho com um avião estacionado na lembrança, convidando-me a visitar os tantos mundos desconhecidos que eu trago no meu peito. As absolutas certezas revelaram-se vulnerabilidade, e apenas perceções, apagando as formas, o estranho ou errado, e os padrões… porque um beijo pode matar, e a distância, uma forma sublime de dizer o amor, se assim se cumprir o privilégio de ler, entender, e cumprir os corações. Os sorrisos dos meus amigos foram tomados por pedaços de pano, os beijos adormeceram puxando os abraços para dentro do mesmo sono, os cafés arrefeceram, os passos sucumbiram a um estranho cansaço, abandonando as praias e o luar das noites perfeitas... O meu pai adormeceu por entre o calor de uma noite estranha e indesejada de verão, ensinando-me que os trilhos da fé n

As gruas do Natal...

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Entro descalço por este Natal, não vá o chão guardar, em discretas cisternas de afagos, o pão que mata a fome, a que usam chamar saudade. Abro uma porta… Há uma poltrona vazia, ao lado de uma mesa pequena onde repousa um cinzeiro e os despojos de meia dúzia de cigarros. O anoitecer adormece o fogo e o fumo, mas não apaga, jamais, as palavras que vieram agarradas ao filtro amarelo, quando o cigarro se passeou, de modo elegante, por entre as nossas tantas conversas ao serão. Confirmo que essas palavras ainda respiram, conservadas, aqui, como em todo o lado, num eterno e perfeito ponto de açúcar. Saio para ir abrir uma outra porta… A sala está vazia, porque as figuras de barro do presépio resolveram ficar em repouso, adormecidas, e enroladas nas folhas já gastas dos jornais antigos. A lavadeira, que por acaso até é do tamanho da casa aonde mora, não quis ir clarear a roupa no rio feito de papel azul, de veludo, e o pastor desistiu de acordar o rebanho, o moinho não quis cortej

Ainda chove...

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Nestes meus dias de regresso à “nossa vila”, como, muito carinhosamente, todos tratamos Vila Viçosa por aqui, desde dentro, nem foi necessário ir revisitar os compêndios e as sebentas de há muitos anos, para poder ler e interpretar os sinais do tempo. Há coisas que são tão profundamente nossas… A chuva que cai, assim, copiosamente, inundando as ruas e pondo os beirados a cantar, é tinta transparente que escorre do céu por bênção insistente de alguma prece, deixando que se escreva em prosa ou em verso, mas sempre na melhor caligrafia de que o vento é capaz, nada mais que não seja a primavera. Ainda que pisemos a lama, e que os veios de água renascidos, como estes, a cada dezembro, pareçam querer roubar-nos as sementes e as raízes, levando-as para bem longe, para se perderem, algures, no mar, sabemos que nada em nós é solúvel em nenhum inverno, e que, ali pelos idos de abril, estaremos todos a celebrar com as rosas. Os Homens são irmãos das árvores, em muitas coisas, e também nes

Respira comigo na mesma Ave Maria

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Por muito que saibamos que as verdadeiras catedrais habitam o peito dos Homens, há templos de pedra que se inscrevem nos caminhos da fé, e nos auxiliam, decisivamente, amainando o rugido feroz das lutas e das batalhas. Na minha Vila Viçosa, no recanto mais nobre e solarengo do espaço entre muralhas, a igreja de Nossa Senhora da Conceição, num dia da já longínqua primavera de 1646, acolheu o preito de um rei lusitano, D. João IV, que, fazendo de Maria, rainha, lhe entregou a terra lusitana e todo o seu imenso mar, rogando aquela divina paz que vem de Deus. Cessou a guerra da restauração, as rainhas e os reis Portugueses jamais usaram coroa na cabeça, e até um Papa, entretanto já canonizado, São João Paulo II, veio aqui rogar-lhe a paz, numa outra manhã de primavera, como parecendo cumprir uma coerência que existe entre Maria, a nossa fé e os meses de todas as flores. Mas porque as mães são bênção maior sobre qualquer tempo, é por entre o frio e a bruma agreste de dezembro, no se

Hoje, e uma imensa viagem

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Quando terminei de ler as mais de 700 páginas do romance Ulisses , de James Joyce , pude aperceber-me do tanto de “viagem” que cabe num dia apenas, para ser mais preciso, nas 19 horas do dia de Leopold Bloom , personagem principal. O dia desse romance, 16 de junho de 1904, é, inclusive, celebrado todos os anos, na Irlanda, em Dublin, conhecido, naturalmente, como o Bloomsday . É um facto indesmentível, de que há ruas que são mares, e gente que é cais aonde se aporta pelos abraços e pelos olhares. Ruas e gente, espaço e corações que cabem na mais ínfima unidade de tempo, só para nos fazerem acontecer. Tudo isso por entre o restolho de tantos e tantos desertos. Para além disso, entre as consequências de crescer, está a perda da dimensão dos espaços, que nos fazem sentir que as salas não são assim tão grandes, e que os armários não são, afinal, tão inacessíveis, juntamente com o aumento da dimensão das pessoas que nos “fizeram”, porque conseguimos vislumbrar que uma simples fati

Uma outra face do tempo

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O sábado amanheceu com o semblante de quem chora, e eu, ainda algo ensonado, enfrentei-o na face das ruas molhadas da minha terra, mas sem o mínimo tom de ressentimento. Daqui a pouco, pelas treze horas, estarei confinado em casa, mas jamais tomarei esse facto como uma traição do tempo, de Deus, ou do terreiro grande aonde brinquei. Era no sábado que íamos às compras, sem máscaras, reconhecíamos as pessoas pelo rasgar mais ou menos recortado do sorriso, e nunca mantínhamos uma grande distância, porque tal seria sinal de mal querer. Depois de ter colocado todas as compras no cesto e de ter feito a conta em papel manteigueiro, com números desenhados a lápis e a prova sempre ali ao lado, o Senhor João de Deus, dava-me uma meia dúzia de amêndoas. Sem qualquer preocupação de assepsia, e de mão para mão. - Toma lá rapaz, para te adoçar o caminho. Sabiam muito bem, até porque eu já tinha tirado uma pequena lasca de bacalhau, que estava junto à enorme faca que o cortava às postas, e

O meu pai faz hoje 80 anos...

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O meu pai faz hoje 80 anos, e digo faz, porque no contexto assumido de um amor, não existe nada de ser e de acontecer, que deva conjugar-se no passado ou no condicional, interrompendo o ímpeto de qualquer sonho. Para além da firme convicção de que está vivo… nos meus passos. Há muitos anos, e quando ainda era adolescente, o meu pai não pôde ir a Lisboa, para acompanhar a imagem de Nossa Senhora da Conceição, porque não tinha sapatos com o “mínimo de dignidade”. Foi ele, pelo seu esforço e pelo seu trabalho, quem conquistou este benefício de nós podermos andar “devidamente calçados”. Por mérito total, e enquanto eu viva, será ele o “inspirador” de todos os meus passos. O meu pai persiste na liberdade que “assassina” os estratos sociais, e nos destapa o sol. Algures no verão passado, sentado numa esplanada de Vila Viçosa, e numa discussão política, alguém argumentou que “pelo facto de eu ser originário de um estrato social superior ao teu, não tens o direito de duvidar das mi

Resistir

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Há ruas nascidas para serem rios de abraços, e olhares, cúmplices de abrigos, que, sem reservas, e de forma gratuita, nos oferecem uma casa, com janelas, aonde possamos morar. As palavras correm com a generosidade fluida das fontes, e nós guardamo-las em cântaros de barro, ao lado do mel, porque da mesma raiz nasceram para virem matar-nos a fome e a sede. Coabitam elas, e o nosso saciado sossego, em poiais de laje, erigidos como altares no recanto da casa de onde se avista a lareira, que se acende muito cedo, de madrugada, com restos de azinho, e nos retira as dores ao mesmo tempo que nos aquece o pão. Em dias eternos, em que nem a chuva consegue distrair-nos, e roubar-nos o sol. Tentei ser fiel à minha terra, Vila Viçosa, partilhando convosco o tanto que ela é para nós. Não consegui, por pura insuficiência de jeito e inspiração. Será muito mais do que tudo isto. E por este tempo difícil em que as ruas quase secaram, os olhares se “enfeitam” de interrogações, e as palavra

Não existem flores maiores que a esperança

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  O meu saudoso professor de Português, Padre João de Deus, explicava-nos a diferença entre o romantismo e o realismo, nas aulas do 11º ano da Escola Secundária de Vila Viçosa, socorrendo-se do exemplo de um casal. Em ambiente romântico, e em plena lua de mel, passeavam os dois no campo quando ele a alerta para o perigo de uma poça de água. - Minha flor nascida do melhor do tempo, procura o nenúfar que te segure o passo para não molhares a beleza desse pé delicado. Trinta anos depois, já imbuídos do melhor realismo, volta o casal ao mesmo sítio, e a mulher recorda: - Lembras-te desta poça de água e da frase tão bonita que então disseste? - Epá, deixa-te lá de parvoíces e não ponhas os chispes na água, porque ainda acabas toda encharcada. Os dias enfeitados de flores, frente a frente com o pragmatismo absoluto, revestido de alguma rudeza, parecendo-me a mim, que também aqui, nos estilos literários, tal como na vida, que a virtude se encontra no centro. No centro e no bom s

Não existe viagem que não seja para chegar a casa…

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Quem é do campo e desfrutou de andar descalço, sabe ler os instantes em que a terra reza, para que o Céu, que em si mesmo é generoso, possa acudir-lhe sem demora, e matar-lhe a sede. De um modo suave, com a tranquilidade própria de uma sexta-feira à tarde, intrometo-me neste diálogo, cruzando o altar informal que é o Alentejo. Para chegar a casa, porque não existe viagem que não seja para chegar a casa, ainda que às vezes, os nossos passos se dirijam para os antípodas do sítio que tem um telhado a proteger-nos o leito, as pantufas e a escova de dentes. A nossa morada anda rabiscada em tantos e tão díspares lugares, sendo imperioso, tantas, e tão dolorosas vezes, irmos até lá para que se dissipem as dúvidas e afinem as coordenadas. Tenho inveja do gato e saudades dos dias sem máscaras, e de quando os lábios partilhavam o seu deleite, ou não, com as palavras, embrulhando-as com a festa ou o vazio que a alma lhes ditava. Tenho saudades do bom senso, da lucidez da partilha, e dos

Intermitências de “Amigos de Alex”

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A nossa geografia, que é gémea siamesa da nossa história, é a soma das coordenadas de todos os lugares que nos inventaram, com destaque, mais do que legítimo, para aqueles onde fomos felizes. E as memórias que desse chão guardamos, desmentem a aridez do pouco, que, às vezes, se vê, elevando-o ao estatuto de templo sagrado. Hoje, durante todo o dia, fui acompanhando, de forma intermitente, o programa da RTP1 sobre jardins históricos, transmitido a partir do Paço Ducal de Vila Viçosa. Fiz a foto num desses momentos, não porque o cantor esteja algures entre as casas das pessoas, escravas ou não, que serviam o duque, e mais tarde, o rei, mas porque ele está situado exatamente no ponto que unia a sala 7 com o acesso ao bar e às salas do pavilhão que abrigava a sala de professores da minha escola secundária. O edifício à esquerda era o ginásio, inventado a partir do picadeiro do Paço, e ao fundo vê-se o portão por onde entrávamos. O lago não existia, porque foi aqui instalado nos anos

Joaquim...

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  Sempre que jantava em casa da avó Natividade, na casa da Rua da Pascoela, ela ia levar-me a casa, depois, ao serão, subindo pela Rua de Santo António. Nesse passeio noturno, que no inverno tinha o prazer de uma das pontas do seu xaile, reparávamos na falha, e no reboco, de uma das fachadas do lado direito, que tinha a forma quase perfeita da cara de um rapaz. Daí até casa, inventávamos histórias que tinham como herói aquela criatura inventada a partir da fragilidade da cal. No outro dia, cinquenta anos depois, passei pela Rua de Santo António, e reparei que a “cara” do rapaz ainda lá está, embora um pouco enrugada, por mão de uma pintura qualquer. Esta semana estará à venda nas feiras do livro de Lisboa (Pavilhão D03 / Alfarroba) e do Porto (Pavilhão da Ibook), e nas livrarias nacionais, virtuais ou físicas, uma coletânea de 400 escritos da minha autoria, que por serem tão assumidamente da minha alma, ganhou o nome de “Joaquim“. Chamam-lhe poemas, mas eu vejo-os apenas como

Pensamentos...

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A nossa casa será sempre o sítio onde a alma nos pede para sentar, assim como esse beijo que não tem prazo de validade, entre outros importantes motivos, porque nele, o tempo não se sente passar. E em ambas as coisas, chão e beijo, não importa, por certo, que alguém, do lado de fora, nos acuse, e se ria de nós, porque montámos a tenda no deserto. Vê mais quem sonha, do que quem investe no oftalmologista, e se foca na visão imediata, e muito de perto. Em tudo onde a alma se cumpre, jamais se morre de fome, ou de sede, porque acreditar é ter trigo ali ao pé, e a fé traz sempre um rio, que corre solto, vida fora, sem margens, sem abismos e sem rede. Gosto de me sentar no silêncio, sentindo a tarde, e de puxar o meu rio, atando-o ao pescoço, como se fosse um cachecol, sabendo também, que o Homem é a nascente do dia certo, por ter na inspiração um interruptor capaz, de a qualquer momento, lhe trazer o sol. A minha ideologia será sempre aquilo em que acredito, sem coordenadas defin

A mesma idade...

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Dizem ser uma das tardes mais quentes do ano, e por isso esperámos pelas sete horas para virmos até aqui, aos campos de futebol de Vila Viçosa, ao carrascal. Eu e o meu sobrinho João. Estacionei o carro de costas para a Escola Secundária, e o termómetro marca 38 graus. Só desfrutei destas instalações no meu décimo primeiro ano, mas a tempo de numa manhã de fevereiro de 1983, termos ordem para sair das aulas e podermos desfrutar da neve. A primeira vez que eu via nevar. A minha amiga Lurdes Duarte foi ter connosco, e fez-nos uma foto no exato local onde agora estou estacionado, e a transpirar. Em Vila Viçosa, no carrascal, como na vida, os mesmos detalhes “geográficos” podem ser tanta coisa: inverno e verão... Soube hoje de manhã que partiu a Fernanda Lapa, e não sei porquê, entre este calor e as memórias da neve, penso em como lhe estou infinitamente grato pelas peças tão bem encenadas que me ofereceu. No princípio dos anos noventa, quando os muros tinham caído e nós trin

Se até a lua gosta de conversar com as chaminés...

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Não fora este silêncio onde as vozes se dissolvem pouco a pouco, como poderia eu escutar com exatidão aquilo tudo que me pede o mar? Adornei a proa deste instante com uma cruz de madeira e a fé de mil anos, e sem medo do fogo que o sol do meio dia impõe à face de quem ousa olhá-lo de frente, predispus-me a ouvir a sabedoria que acode à superfície das águas, soltando-se em frases cantadas ao sabor salgado da maré. Se até a lua gosta de conversar com as chaminés… Lições das praias desertas, mesmo para quem está, ocasionalmente, longe das águas, ou como se o tempo desse, finalmente, resposta, aquele, tanto, que o peito, em tantos dias, soube rezar. O pior inimigo do Homem é a mediania, a casa onde o sim ou o não se escondem, o asfixiar das dicotomias no quedo remanso de nada ter de justificar. A maior virtude do Homem é desvirtuar o tom opaco que poderá ter a sua própria pele, tornando-a transparente, sobrepondo o individuo à militância, na dispensa das epidermes vendidas a saldo em lojas

Como se aprende a dizer o amor?

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Como se aprende a dizer o amor? Existirão muito mais de mil formas... Consigo imaginar o baile, a orquestra, a noite estrelada, o cheiro intenso a verão, e um rapaz de dezanove anos de fato escuro e papillon, a dançar com a sua amada, por certo adornada pelo melhor vestido. Estamos em 1960, a guerra colonial não tardará, mas na inspeção militar deste ano, que por aqui chamam “sortes”, há muitos mancebos dispensados dos quartéis. Festejam-no agora, duplamente, neste baile já marcado há meses, porque, independentemente da cor do carimbo na certidão militar, haveria de celebrar a idade adulta. A rapariga, confessadamente nervosa, terá já esquecido o veredicto de uma flor que há três anos colocou junto ao altar da Virgem. Murchou ou não, antecipando a perspetiva deste instante? Não se recorda, mas o rapaz é o mesmo de então, o de sempre, e hoje, por entre a festa, ele pede licença para namorar com ela por entre o aplauso de todas as flores do universo. Passaram ontem se

Entre o chão e o Céu

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O chão e o Céu são uma e a mesma coisa para quem não teme abrir as suas janelas, deixando entrar o sol sem reservas ou timidez. E não se opondo, ao mesmo tempo, que o ser voe e cresça para lá das paredes mais ou menos pintadas, profanos altares onde os invernos nos foram abrigando da ventania. Esta semana permiti-me sentir assim, algures entre o soalho lavado onde a solidão emerge e dói, e os horizontes “impossíveis” que vou galgando de braços abertos em voos mais ou menos tranquilos, por sobre os campanários mais altos. Nuns e noutros momentos permiti-me brincar com o sol, entoando salmos à vida, que, dispensando o canto e os versos, tomaram aleluias do gesto, da paz e do compromisso para com o sorriso e o otimismo. Gosto de sentir a vida, assim, como um rio tranquilo que às vezes, por tanto querer o mar, muito mais do que por destino, tem forçosamente de cruzar o deserto. E por força das pedras, as águas soluçam, despudoradamente, em cascatas, renovando-se, sem querer

O meu pai

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Enquanto a História foi, aos poucos, desenrolando mais uma manhã de verão, eu perdi o medo de morrer, o pudor de chorar, e, finalmente, compreendi Jerusalém. O meu pai jaz na sua cama, aqui na nossa casa, à minha frente, no ponto geograficamente intermédio entre mim e a janela que, aos poucos, traz o canto dos pássaros, o azul do céu, o motor dos carros, o bater das horas, a fala da gente. Parou de respirar pelas duas da manhã, mas a vida encerrada nestas horas que puxam o dia, são muito mais do que uma família e o seu morto fechado num corpo que arrefece, mas mantém o sorriso. Sempre ouvi dizer que a partida de um pai nos envelhece, mas descubro, agora, que não é exatamente assim, porque reencontrei o choro de rapaz, e, muito perdido na idade, o que emerge no meu peito é esta infinita paz de já não ter medo de morrer. Algures entre o horto e a porta dourada de Jerusalém, o meu pai estará a sorrir para mim, dando-me depois o braço para entrarmos, e caminharmos juntos até à

Hoje é o dia dos meus anos...

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Hoje é o dia dos meus anos, mas ao contrário do que acontecia há muito tempo, noutros verões, já não terei um fato azul para estrear, com calções e camisa a condizer. Também não terminarei o dia a contar as notas verdes de vinte escudos, com a efígie de Santo António, pensando em tudo aquilo que elas poderiam comprar. Hoje é o dia dos meus anos, mas já não terei um bolo pintado de branco, com uma muito consistente cobertura de açúcar, e com dezenas de bolinhas prateadas ao redor de umas velas coloridas. Hoje, no dia dos meus anos, em 2020, dou a mão ao meu pai que repousa na cama, tentando sossegá-lo por via desse incansável diálogo que só consegue a pele de quem se ama. Cada carro que passa no Terreiro, promove uma sombra que se projeta na parede branca do quarto, e o meu pai, às vezes, sorri, apontando para cima com o olhar. As sombras também são carros, e também são gente, tal qual as pétalas que os dias deixam cair, carregam a essência e a memória das rosas onde se