Uma outra face do tempo


O sábado amanheceu com o semblante de quem chora, e eu, ainda algo ensonado, enfrentei-o na face das ruas molhadas da minha terra, mas sem o mínimo tom de ressentimento.

Daqui a pouco, pelas treze horas, estarei confinado em casa, mas jamais tomarei esse facto como uma traição do tempo, de Deus, ou do terreiro grande aonde brinquei.

Era no sábado que íamos às compras, sem máscaras, reconhecíamos as pessoas pelo rasgar mais ou menos recortado do sorriso, e nunca mantínhamos uma grande distância, porque tal seria sinal de mal querer.

Depois de ter colocado todas as compras no cesto e de ter feito a conta em papel manteigueiro, com números desenhados a lápis e a prova sempre ali ao lado, o Senhor João de Deus, dava-me uma meia dúzia de amêndoas. Sem qualquer preocupação de assepsia, e de mão para mão.

- Toma lá rapaz, para te adoçar o caminho.

Sabiam muito bem, até porque eu já tinha tirado uma pequena lasca de bacalhau, que estava junto à enorme faca que o cortava às postas, e ia com a boca demasiado salgada.

No caminho, antes das compras ou no regresso a casa, cumpria-se o mandamento que os pais e os avós nos repetiam até à exaustão:

- Ao passares pelos primos ou pelos tios, tens sempre de ires cumprimentá-los com um beijo.

Todos apreciavam esse gesto, e faziam-no sentir com um afago na cabeça, ou então uma moeda reluzente com alguns tostões, para podermos comprar rebuçados envoltos em cromos da bola, ou chupa-chupas de caramelo, na “Sopa dos Pobres”, a caminho da escola.

Mais tarde...

Regressava a Vila Viçosa, e às mesmas ruas, para um pequeno fim de semana, e a Marta, que era mínima, dizia aos pais, os meus amigos Manuela e José Maria, que queria ir ao café, porque estando o Quim, a conversa seria interessante.

Ao lerem conversa interpretem como “palhaçada”, e esse momento após o almoço era do melhor que tinha o sábado.

Hoje...

Enfrento o sábado sem beijos, sem abraços, com máscaras e com distâncias, sem “conversa” e sem amigos no café, mas sem qualquer tipo de ressentimento.

Porquê?

Porque tudo isto é expressão do mesmo amor e do mesmo querer.

O amor abarca todas as faces do tempo, e este sábado, é apenas uma outra, diferente, nos antípodas daquela, feliz e escorreita, dos dias das compras e do café.

Amar como quem cuida, e hoje, ficar em casa, no silêncio opaco e órfão de gargalhadas, é a “conversa” mais interessante.

Lições?

Talvez seja importante viajarmos até às faces opostas àquelas que apontamos como regra, quer sejam do tempo ou da vida, levando na algibeira, e sobretudo na alma, a linguagem, e sobretudo a missão, do mesmo amor.

É preciso fazer desmoronar as convicções cegas e as perceções, assumindo a necessidade de reaprender a ler a vida nos antípodas daquilo que já fomos e que julgámos eterno.

 

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