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A mostrar mensagens de julho, 2018

O barco e o tempo...

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Não existe nada mais eficaz para nos fazer sentir velhos do que a fragilidade que o tempo impõe aos nossos pais. Já não brincamos sossegados na parte do barco que não dói, e somos nós quem rema na proa contra ventos de solidão, às vezes sentindo que o olhar, por ter tanto sal, já foi inteiramente tomado pelo próprio mar. A nós, por termos sorte, valem-nos então os mestres improváveis e as lições inesperadas que os dias vão trazendo até à barcaça. O meu sobrinho Luís guarda em si um mundo muito próprio onde os bonecos, durante a noite, falam uns com os outros debaixo do edredão. Porque todos os bonecos que desenha merecem ter corpo a três dimensões, pede à minha mãe, a sua avó Inácia, que os costure no tamanho que ele idealizou, sendo sempre exigente e rigoroso, rejeitando algum que não cumpra os seus preceitos estéticos. Nós somos do tamanho do sonho que fomos desenhando na intimidade da alma, exigindo-nos a vida que reunamos as condições para o concretizar na sua exata medida. E os

Enquanto um de nós tiver “músculo”…

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Ainda que a maré se afaste e nos deixe sós presos às pedras lascadas do cais, nós sabemos que o nosso destino é feito de navegar. Descalços, ferimos os pés nos mexilhões com casca em forma de navalha que o mar atou às rochas, e até poderemos escorregar, aqui e ali, na imensidão de algas que pintou de verde o chão da maresia, mas o nosso barco irá connosco de encontro à água que nos possa levar. O Homem nasceu com músculo para poder cumprir os sonhos e o mar que a alma lhe inspirou desenhar. E porque o sonho e a alma são universais, e há gente a quem o tempo foi roubando o “músculo”, cumpre-nos o dever de não deixar que nenhum barco morra sozinho no cais. Isto é viver, e amar é não deixar que alguém possa sentir-se só. Não aprecio a lamúria, e não tenho da vida a perspetiva de um longo e monótono campeonato onde se procura o record do mundo da desgraça que reclama dos outros um olhar de pena, e acredita que Deus, na hora da nossa “morte”, estenderá a mão em primeiro lugar ao ma

Os dias que contam…

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Os dias que contam são aqueles em que finalmente descobrimos rosas por entre a hortelã, mesmo que há muito tempo nos venham chamando insensatos e loucos à margem da razão. Como se alguém, a não sermos nós mesmos, pudesse desenhar um GPS que cumpra o exclusivo tom da vontade que trazemos no coração... Sim, é verdade que às vezes entramos por cavernas escuras, por pura curiosidade, ou tão só porque tentamos fugir da chuva, mas isso não subverte o destino maior inscrito no ADN dos Homens: a liberdade. Passamos frio, choramos de saudade, sentimos a fome no estômago e a solidão no peito, oramos, se acaso tivermos fé, e quase sempre, beneficiamos da chegada de um amigo que se revestiu de coragem e mergulhou para nos resgatar do medo, por mais estreitos e escuros que sejam os caminhos até nós. Às vezes as notícias do Telejornal ilustram as nossas vidas e os dias que nos oferecem para sermos nós. Existirão vantagens no escrupuloso cumprimento da previsibilidade? O abraço on

No instante em que eu nasci...

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No instante em que eu nasci, o relógio da torre de São Bartolomeu já se preparava para assinalar o meio-dia. Como era hábito numa terça-feira do mês de Julho, ao toque do relógio e das buzinas das fábricas, os homens encetaram o caminho de regresso a casa, para o almoço, descendo a praça num passo tão acelerado que quase parecia irem a acudir a algum fogo. Nesse mesmo instante, no pequeno quarto interior, mas com duas portas, terá restado uma cova no colchão de esponja, rapidamente apagada pelas mãos enérgicas da avó Chica, empenhada em oferecer à cama uns lençóis lavados. A avó Dade terá ido “conversar” com Nossa Senhora da Conceição para lhe agradecer a saúde do neto, e a tia Bia terá chegado com um alguidar e um sabão especial, porque as fraldas do menino não poderiam ser lavadas na companhia de qualquer outra roupa. A tia Joaquina Rosa trouxe uma canja com pedaços de galinha do campo. Não poderei recordar-me com exatidão, mas estou certo que a minha mãe se comov

O caminho de regresso...

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Há momentos a que viramos definitivamente as costas para regressarmos a nós, aproveitando a estrada que os nossos pés calcaram sob o peso imenso da ilusão. Uma pedra projetada sobre a vontade branca e limpa pode parecer um cais e um abraço, mas só até o sol sucumbir ao cinzento tom das nuvens. Nesse instante desmascaram-se as sombras, e a pedra passa a ser aquilo que sempre foi: uma pedra, ainda que possa estar enfeitada de flores na raiz onde beija a terra. Porque o amor nunca nos pertence, talvez nada seja tão completamente meu quanto o silêncio deste caminhar de regresso a mim pela estrada onde as silvas já não são casas das amoras, e o perfume da esteva se apaga no incómodo da sua resina que nos mancha as mãos. O caminho de regresso de um amor é a lucidez, invertendo a marcha na rotunda onde alguém inventou uma estátua para “celebrar” a ilusão. Mas eu sei que nesse caminho de regresso eu já não sou o mesmo que passou ali quando o tempo ainda era azul, e talvez eu só tenha i