No instante em que eu nasci...



No instante em que eu nasci, o relógio da torre de São Bartolomeu já se preparava para assinalar o meio-dia.
Como era hábito numa terça-feira do mês de Julho, ao toque do relógio e das buzinas das fábricas, os homens encetaram o caminho de regresso a casa, para o almoço, descendo a praça num passo tão acelerado que quase parecia irem a acudir a algum fogo.
Nesse mesmo instante, no pequeno quarto interior, mas com duas portas, terá restado uma cova no colchão de esponja, rapidamente apagada pelas mãos enérgicas da avó Chica, empenhada em oferecer à cama uns lençóis lavados.
A avó Dade terá ido “conversar” com Nossa Senhora da Conceição para lhe agradecer a saúde do neto, e a tia Bia terá chegado com um alguidar e um sabão especial, porque as fraldas do menino não poderiam ser lavadas na companhia de qualquer outra roupa.
A tia Joaquina Rosa trouxe uma canja com pedaços de galinha do campo.
Não poderei recordar-me com exatidão, mas estou certo que a minha mãe se comoveu ao apagar-me o choro, entregando-me o lado de fora do seu peito; porque o lado de dentro já me pertencia com a força de mil anos. O meu pai terá disfarçado o nervosismo e a emoção empenhando-se em algumas tarefas domésticas para as quais não tinha qualquer jeito.
Na noite de lua cheia que se seguiu a esse instante, terei adormecido escutando as vozes animadas das vizinhas na rua, e nem terei dado conta da chegada do vizinho Grilo, que era estafeta e que viajava sempre no comboio da noite.
Não sabendo como acabará esta história, sempre poderei dizer que ela começou num instante, em que sem perturbar o universo, Deus resolveu oferecer ao mundo o “grito” de um rapaz, a quem chamaram Joaquim Francisco, em atenção a ambos os avós.
Foi numa casa simples de primeiro andar, em Vila Viçosa, na Rua de Três, numa manhã quente do verão de 1966.
Tudo aquilo que foi acontecendo entretanto teve raízes nos detalhes simples, mas inigualáveis, que existem no lado de dentro do peito de quem me ama.

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