O meu pai



Enquanto a História foi, aos poucos, desenrolando mais uma manhã de verão, eu perdi o medo de morrer, o pudor de chorar, e, finalmente, compreendi Jerusalém.
O meu pai jaz na sua cama, aqui na nossa casa, à minha frente, no ponto geograficamente intermédio entre mim e a janela que, aos poucos, traz o canto dos pássaros, o azul do céu, o motor dos carros, o bater das horas, a fala da gente.
Parou de respirar pelas duas da manhã, mas a vida encerrada nestas horas que puxam o dia, são muito mais do que uma família e o seu morto fechado num corpo que arrefece, mas mantém o sorriso.
Sempre ouvi dizer que a partida de um pai nos envelhece, mas descubro, agora, que não é exatamente assim, porque reencontrei o choro de rapaz, e, muito perdido na idade, o que emerge no meu peito é esta infinita paz de já não ter medo de morrer. Algures entre o horto e a porta dourada de Jerusalém, o meu pai estará a sorrir para mim, dando-me depois o braço para entrarmos, e caminharmos juntos até à luz do domingo de Páscoa.
Mas choro muito, é verdade, aqui, nesta madrugada tão intimamente nossa, porque descubro que a falta dos beijos do meu pai me faz doer, porque tenho medo que a memória possa trair-me, roubando-me o seu olhar e o seu assobio, porque se apagaram as mãos que ainda agora me faziam cócegas, porque já ninguém me chamará “o mê gaiato más velho”, porque já não tenho o melhor companheiro para uma bica, porque já não direi “faz favor” só para ele me responder “faz favor era o cão do Passarudo”, porque ruiu tanto da “casa” onde nasci e cresci...
Num dia de outubro de 1984, o meu pai foi levar-me a Lisboa, e a caminho da minha nova casa, ao Príncipe Real, propôs-me que subíssemos a pé a Calçada da Glória, dispensando o elevador.
Fomos devagar, descansando, aqui e ali, e à sombra no Largo da Oliveirinha, até porque havia muito que conversar.
“Apesar das inclinações da vida, os músculos do carácter, que são como os das pernas, conseguem levar-nos até ao cimo do que o sonho disser. Já és um homem, e eu e a mãe estamos contigo, muito confiantes, porque sabemos que tu serás capaz de chegar até onde se é feliz. Conta connosco”.
O amor é esta proteína que dá vida e forma ao ser.
O meu pai é, e será sempre, este quase tudo da vida que sou, e é, e será sempre, um mar imenso de motivos para sentir saudades e chorar aos poucos como quando era rapaz.
Depois, finalmente, o dia clareou até ao seu ponto máximo, quando eu já descobrira que jamais serei uma sombra enlutada e fria envolta pelo destino triste de ficar órfão de um dos seus corações.
Despido de pedras, de negros e de cansaços, eu sou uma árvore em sua memória, um parágrafo bonito, sendo o filho de um Homem grande que passou pela vida sem nenhumas outras grandes ambições, para lá de ser imaculadamente honesto e poder sorrir.

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