As gruas do Natal...


Entro descalço por este Natal, não vá o chão guardar, em discretas cisternas de afagos, o pão que mata a fome, a que usam chamar saudade.

Abro uma porta…

Há uma poltrona vazia, ao lado de uma mesa pequena onde repousa um cinzeiro e os despojos de meia dúzia de cigarros.

O anoitecer adormece o fogo e o fumo, mas não apaga, jamais, as palavras que vieram agarradas ao filtro amarelo, quando o cigarro se passeou, de modo elegante, por entre as nossas tantas conversas ao serão.

Confirmo que essas palavras ainda respiram, conservadas, aqui, como em todo o lado, num eterno e perfeito ponto de açúcar.

Saio para ir abrir uma outra porta…

A sala está vazia, porque as figuras de barro do presépio resolveram ficar em repouso, adormecidas, e enroladas nas folhas já gastas dos jornais antigos. A lavadeira, que por acaso até é do tamanho da casa aonde mora, não quis ir clarear a roupa no rio feito de papel azul, de veludo, e o pastor desistiu de acordar o rebanho, o moinho não quis cortejar o galo…

O silêncio, por ser o eterno cúmplice da memória, quantas vezes, como hoje, nos parece o melhor refúgio para reencontrarmos quem não está por aqui, ou o Natal que nos parece não acontecer?

Continuo descalço e a abrir portas atrás de portas, neste meu ser solitário por entre as horas feitas de salas vazias.

Não vejo a árvore, e por onde andará o menino Jesus e todas as suas luzes?

Finalmente, de um dos lados do longo corredor, e após abrir a derradeira porta, deparo-me com uma sala deserta de gente, sem telhado, com a lua à espreita e uma grua de onde pende um enorme espelho, estrategicamente colocado para que eu me possa olhar de frente.

Envelheci. Definitivamente, sim.

A barba branca, algumas rugas, o ar cansado…

Tento sorrir… um pouco… depois mais, e vou avançando, porque reparo que, devagar, o olhar me devolve, finalmente, a mim.

O nosso sorriso será sempre a via mais fiel para nos reencontramos, e assim redescobrirmos o Natal.

Resolvo calçar-me e regressar depressa à poltrona da primeira sala, mas oferecendo-me ainda algum tempo para confirmar que o céu também sorri.

Sento-me, e deixo-me envolver pelas palavras que ainda respiram, cantam e assobiam… porque o meu pai, que as inventou, continua ali, da mesma forma que está no silêncio, nas árvores, na lua… pendurando espelhos para que eu me reencontre na esquina do melhor sorriso.

Respiro fundo, e, abraçado à paz do Natal, que será sempre, um beijo de Jesus acordado no centro do meu peito, deixo-me adormecer de pensamento dado com o meu pai.

 

Um Santo Natal, para todas(os), e um imensamente feliz (descaradamente melhor) 2021.

Seguiremos juntos.

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