O outro lado do glamour

Em Milão, a semana da moda feminina tornou intransitáveis as ruas do centro e é difícil fotografar um monumento ou um edifício sem captar os monitores gigantes que de forma ininterrupta passam os infinitos desfiles.
As pessoas, como que inebriadas pelo luxo e pela cor, param e caminham ao estilo de zombies vagueando por entre uma multidão de iguais criaturas e tornam quase missão impossível a passagem de alguém que não esteja ali para ver as montras. Há focos de luz e música em cada esquina.
A coincidência desta semana com o congresso em que participo “patrocinou-me” em cada manhã, o pequeno-almoço com um grande grupo de manequins alojadas no mesmo hotel que eu.
Manequins a quem tenho dificuldade em chamar mulher ao conjunto constituído por um rosto de menina e uma estrutura óssea despojada de carne esticada até aos arredores dos dois metros, sem mamas, sem rabo e numa claríssima aproximação a um cabide onde alguém pendurará as criações dos grandes costureiros.
Caminhando lentamente por entre o buffet parecem querer guardar as poucas energias de que dispõem para a passarelle onde mais tarde irão desfilar. Não bebem leite ou café, apenas copos de água quente retirada do recipiente que guarda a dita para o chá, e a cada ingestão de uma colher de iogurte natural magro estão permanentemente sujeitas ao olhar reprovador de umas mestras, essas sim gordas pelo alimento que sacam do trabalho destas suas “agenciadas”, que estão nos antípodas dos criadores de frangos na sua urgência de uma engorda rápida.
Não há escravatura na Europa? É só em África e na Ásia que a excisão “tira a vida” às mulheres e lhes nega uma existência normal e digna?
A noite está quente e pede um passeio pela avenida que nos leva até ao esplendor da Estação Central na Praça Duque de Aosta que com o seu quê de Reichstag denuncia as semelhanças entre o Fascismo de Mussolini e o Nacional Socialismo de Hitler.
Caminhamos pelas arcadas onde nas montras brilham as criações italianas com fatos de bom corte e muito bons tecidos. De repente temos de nos afastar das montras, há dezenas de colchões alinhados por debaixo delas e a gente começa a deitar-se por ali no único abrigo que a vida lhes deixou.
O design da pobreza numa Europa que já foi terra de liberdade e sucesso, sonho fugaz destruído pelas mãos incompetentes dos políticos medíocres entretidos a jogar Monopólio e a brincar com Swaps, PPP’s e coisas que tal, enquanto a “Mãe Ângela” preparava o lanche da miséria que nos é servido agora em bandejas com o patrocínio do FMI.
Na viagem de táxi de outro dia, o Elias, jovem libanês de 34 anos contou-me a sua história com a chegada a Itália para estudar ficando alojado na casa de uns tios e como pagava o mestrado com a ajuda do dinheiro ganho a conduzir à noite durante algumas horas, o táxi que o tio conduzia durante o dia.
Quis saber como ia Portugal e foi franco quando assumiu que não o fazia apenas por preocupação pela nossa situação mas porque estava curioso sobre o que a vida lhes reservaria nos próximos tempos por aqui numa espécie de Portugal e a Troika, ou a profecia e a antevisão do futuro da Europa.
E na noite de Milão falámos sobre o fim do que foi para ele uma terra de sonho e para mim um tempo também de sonhos.
A Europa e as suas múltiplas faces negras escondidas por detrás do glamour, ocorrências letais num processo que nega e mata a sua essência de pátria de sonhos e ícone de liberdade na asfixia às mãos dos poderosos senhores da finança.
A miséria por detrás e pela frente das “montras” e da sua tão ténue aparência de grandeza.  

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