Músculo e água de fé...


Sempre que o verão partia e a aragem nos convidava a revisitar os guarda-fatos em busca de “abafos”, fechavam-se os postigos das portas e acendiam-se as primeiras braseiras, ao redor das quais ateávamos a conversa nos serões que cumpriam a mesma sina do tempo de então: não existia pressa.
Nas prateleiras altas dos armários da cozinha havia conserva de tomate e taças de compotas de ameixa, abrunhos, melão... para lá da inesquecível marmelada.
Aprendi há muito a tomar o melhor do verão e a guardá-lo de forma eficaz, para poder cruzar o inverno sem deixar de sentir o sol.
O tempo agora é bem diferente, em tudo e também na pressa, mas quando a semana me obriga a atravessar a solidão, vejo sempre que trouxe comigo garrafas de água das melhores fontes que beijei, trouxe abraços guardados em memórias e retratos, e não há fome que me atormente, porque trouxe na mochila o pão que respira entre os milhões de versos que colhi dos dias claros.
Nada nem ninguém é breve ou desprezível, e o todo de um instante não se esbate no instante a seguir, permanecendo como músculo e água de fé que nos permitirão cruzar o deserto.
Tudo e todos importam e permanecem, alimentando-nos do brilho das braseiras de picão enquanto esperamos alegres pelo verão que virá a seguir.

 

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