Apontamentos de um jantar no Gerês…


O fim da tarde oferece à sala de jantar a luz de Vermeer, mas um olhar mais atento sobre os gestos e os nossos olhares denuncia Visconti, cuja câmara não deverá andar muito longe dali.
Todos nos cruzamos durante o dia entre a fonte de águas medicinais, as salas de leitura, o elevador, o café e a papelaria onde compramos os jornais. Aos poucos e por muito poucas palavras, vamos conhecendo a história de cada um. Os que somos reincidentes, já nos conhecemos dos verões passados.
O Skype ligado num i-Pad na mesa ao lado da minha desmente as paredes, os gestos e a luz, trazendo a datação do repasto para o século corrente, tudo porque o casal na casa dos cinquenta não resiste a falar com a filha emigrada. Tanto da saudade mora nos lugares deixados vazios à mesa do jantar.
Para além desta conversa que vamos escutando, mas sem prestarmos grande atenção, dos diálogos de cada mesa só emergem algumas frases nos instantes em que todas as outras se cruzam no silêncio.
“Nós nunca bamos ber o Puorto à Luz. A Albalade ainda bamos porque é outra gente”
A Condessa da Foz, mas que arrota Ermesinde de cada vez que abre a boca, conversa com o marido e um conhecido jornalista que está sozinho na mesa ao lado.
Apetece-me logo cantar o hino do Luís Piçarra para atormentar esta “galinha” que eu afogaria em milho e outros cereais.
Sim, porque aproveitando a luz cinematográfica sempre poderia chamar o Poirot, inventando logo ali uma inédita “Morte no... Silo”.
Mais afastado, numa mesa ao fundo da sala, está um bispo à conversa com um padre, sendo que sua excelência reverendíssima é de todos nós aquele que nunca diz bom dia, por muito que o seu olhar se cruze profundamente com o nosso. Não conseguirei entender jamais que um bispo se negue a sorrir para o seu Deus que respira e caminha nos corpos e nas almas de todos nós.
Duas amigas excêntricas falam em Português, Francês e Inglês, logo ali ao lado da mesa dos clérigos. Vestem roupas que parecem ter resistido desde os “Verdes anos” do “Vá-vá” ou dos acampamentos hippies da década de sessenta, e pela profusão de madeixas coloridas que trazem nos cabelos, comprovam que a Maria José Valério ainda terá muito que aprender.
A luz da sala vai diminuindo à medida que o tempo passa e o jantar avança, parecendo que Rembrandt esteve por ali a dar umas pinceladas muito suas. Nesta “Ronda da noite” não sei o que dirão da mesa em que estou sentado com os meus pais e vou tomando apontamentos do filme onde também somos protagonistas. Mas, legitimamente, talvez alguém me trate por “Janela indiscreta”.

 

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