Bibliotecas, trincos e Madalena Iglésias


Existe uma velha anedota acerca de um Alentejano, por certo meu compadre, que algures numa aldeia remota, entre sobreiros, esteva, e giesta, se questionava sobre o porquê de ser gratuito, o acesso aos livros na biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian.
A insistência do homem relativamente a tal benefício levou a que, certo dia, o bibliotecário lhe tentasse explicar:
- O Senhor Gulbenkian era um homem muito rico e com muitos poços de petróleo...
Tendo esta frase sido suficiente para o Alentejano concluir:
- Não diga mais nada, que eu gasto pelo menos dois litros de petróleo no candeeiro, para poder ler os três livros que todos os meses levo daqui.
Há já muito tempo que nos habituámos a esgravatar os atos, os gestos ou as palavras boas, acreditando que por detrás de todos eles existe, mais ou menos camuflado, um interesse qualquer.
O amor, na sua vertente mais desinteressada, que é a amizade, parece ser coisa de outras eras. E quem não sofreu já o bombardeamento de "tolo" perante o credo recitado em prol dos amigos?
No tempo em que eu bebia Laranjina C por um copo de vidro estampado com o rosto da Madalena Iglésias, que a Tia Joaquina Rosa me oferecera nos anos, os dias não tinham grades de prudência para os amigos, que ficavam sempre à distância, desprezível, de um trinco aberto por um cordel, quando a mão se intrometia no postigo das portas.
No domingo passado, em Vila Viçosa, e à volta de um chá que "digerisse" as migas, sentei-me à volta da braseira com os meus pais, o Rui, o Álvaro e o Manuel, pouco tempo antes de regressarmos a Lisboa.
Agora, as palavras substituíram os frágeis cordéis que abriam os trincos, mas os amigos persistem como partes bonitas de nós, sem interesses por detrás da festa de sermos apenas um, mas feitos, afinal, de muitos.
Mais tarde, na autoestrada, acho que o Céu, já com a Madalena em alguma nuvem azul a oferecer-lhe um toque semi-pop, fez questão de se alinhar, confirmando-me, sem margem para dúvidas, esta forma de sentir.

 

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