Buscando o inverno


Quando Outubro nos rouba a fina subtileza dos trajes de água, emergem na tarde quente, e como que em íntima prece ao céu, as marcas da história que trazemos coladas ao peito.
Pessoas, beijos, deceções, desapegos, encontros, silêncios, ilusões, crenças e mágoas… Tudo registado e perene, no coração, moldando por dentro, a epidérmica orografia que lhes oferece um teto e uma casa.
Passos que tomaram matrícula das vontades da alma descansam agora sonolentos na berma das rugas, essas estradas que foram nossas e secaram pelo desamor ou pela má sorte.
Mas o inverno talvez não tarde e cubra de fontes os dias que virão, semeando flores e pão sobre este esqueleto que a idade, aos poucos, foi tecendo.
Quem olha para o passado, não vive, limitando-se a rodopiar num círculo fechado, sucumbindo pela vertigem, e magoando-se ao tropeçar nas lápides que jazem por ali.
Vive quem toma o tempo e bebe o fôlego das suas águas soltas, caminhando sem temer o desconhecido que existe para lá do horizonte para onde o olhar nos puxa.
E o resto… são raízes sob a nova pele que o inverno teceu, a pele que importa, a pele dos beijos.
Se pelo ar se respira e se vive, apenas os beijos de hoje carregam oxigénio. Os demais, resquícios de outros invernos, são memórias cansadas e entregues ao pó.
 

(Agradeço a foto ao meu amigo Horácio Santos)

 

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