O abraço do velho sábio


Há um velho sábio sentado na torre do edifício mais alto que ladeia a praça, ali, entretido à conversa com os outros pássaros, que vão e vêm no seu voo de mil anos.
A morte, que apenas soterra as mãos e os lábios, liberta-nos do desconforto das forças centrípetas e desata-nos as asas para que toquemos, bem lá no cimo, as palavras todas que os heróis lançaram ao céu no seu grito de liberdade.
Esta semana pedi ao meu querido amigo José Manuel Delgado que me enviasse desde a sua Andaluzia, um desenho dos muitos que vai fazendo e eu vou espreitando pelo Facebook.
Pedi-lhe um desenho que contasse uma história.
Este que recebi e encima o texto carrega em si a memória de um facto real ocorrido no dia 4 de Fevereiro de 1888, quando na sua terra, Riotinto, na serra de Huelva, uma grande manifestação reclamava contra os baixos salários praticados pela companhia mineira, e também contra a poluição da queima do minério a céu aberto, indutora de gases que roubavam a fertilidade dos solos e matavam Homens e animais. Foi considerada a primeira manifestação ecologista da História da humanidade.
Na aliança sempre perversa ente o poder político e o económico, nesse dia de Fevereiro, a carga das forças policiais matou mais de 100 pessoas, heróis anónimos sepultados depois, algures no fundo de uma mina encarnada, de cobre, mas sobretudo, de sangue.
Nem de propósito, este desenho, numa semana em que só ouvi falar de fogo e de fronteiras, de poder e de interesses sectários, de incompetências, responsabilidade, de direita e esquerda...
A História é, definitivamente, um caminho em círculo, e a dor de antes, infelizmente, parece não deixar anticorpos que previnam novas “batalhas” onde o fogo e o poder esmagam a liberdade, roubando o ar por onde respira e brilha a nossa dignidade.
Há um velho sábio sentado na torre do edifício mais alto que ladeia a praça que ficou de Fevereiro de 1888, lição da memória a espreitar por entre a bruma dos dias.
É um poeta, velho no rosto mas imortal no ímpeto de liberdade que reveste todas as palavras com que a sua alma perfuma o vento da serra. Um dia, eu conheci-o e fui tocado pelo seu abraço.
 

(Agradeço pois o desenho à arte do meu amigo José Manuel Delgado)

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