Os beijos que escrevem livros…


Enquanto andamos pela Praça a brincar às escondidas ou aos Jogos Sem Fronteiras, um tio que passe por ali, e para quem corramos a saudar com um beijo, talvez puxe do porta-moedas, guardado ao lado dos cigarros Kentucky ou Definitivos, e nos dê uma moeda de dez tostões que guardaremos no bolso até acabar a brincadeira.
Nas padarias vendem broas de azeite e de manteiga, e eu prefiro as primeiras; sendo quase certo que a dita moeda castanha saltará do meu bolso para a gaveta do balcão que a mulher de bata branca vai abrindo ao ritmo da saída dos papos-secos e dos pães de quilo e meio quilo.
Assim se aguenta a tarde até à hora do jantar, quando a mãe abrir a janela para nos chamar:
- Oh Zé Artuuuuur.
Ao ouvir chamar pelo meu irmão, eu já sei que a duração do "ur" é diretamente proporcional à pressa que devo ter, sabendo assim se deverei ou não correr.
Depois do jantar virão as tias e as avós passar o serão, e nós já de pijama, estafados pela brincadeira e com os dentes já sem rasto de broa, pedimos para adormecer nos seus colos, tapados pelos xailes.
Nunca saberemos qual o final da história que nos contam pois só acordaremos no outro dia, pela manhã, desconhecendo também quem nos ajeitou entre os lençóis e nos deu um beijo.
No salão dos Paços do Concelho de Vila Viçosa, onde hoje apresentarei os "Girassóis" aos meus conterrâneos, as janelas têm vista para a Praça, e talvez eu não resista a espreitá-la, afastando as portadas de madeira pintada de azul.
Não sei se sentirei saudades, mas é muito pouco provável, porque as histórias todas do livro cumprem a genética desses colos ao serão, em que o calor era dos peitos e das palavras, muito mais do que dos xailes.
Talvez o meu olhar "varra" a Praça, mas já sem qualquer pressa, que a idade, parecendo roubar-nos tempo, ensina-nos a distende-lo e a saboreá-lo com ganas de infinito.
As moedas já não saltarão nos bolsos, porque “ter” será sempre um verbo transitório, um detalhe de logística posto ao serviço do cumprimento das mais férreas e doces vontades.
E as broas?
O doce estava nos beijos que as geravam, muito mais do que no açúcar da massa com que as moldavam.
Em Vila Viçosa, onde as ruas têm tetos de laranjas, e onde cada recanto ressuscita os nomes dos donos dos beijos que escrevem livros.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM