O amor enleia-se no fio branco das rendas


A primavera de 1981 foi o período em que a minha mãe produziu mais peças de crochet.
Apanhava a automotora pela uma da tarde na estação de Vila Viçosa, apeando-se duas horas depois na Comenda, já muito próximo de Évora.
Regressava a casa no autocarro das dezassete, numa viagem de cerca de uma hora.
Todos os 27 dias contados a partir de 19 de Março, aquele em que fui submetido a uma cirurgia na sequência de uma apendicite que acabou em peritonite.
Pelo menos, três horas de crochet por dia, porque existia ainda o tempo das esperas.
O verão de 2017 segue quente no Minho, e eu agradeço a brisa fresca do percurso até à fonte do Gerês. A primeira toma de água é às sete e meia, e eu vou sozinho com dois copos na mão, que o meu dorme sempre por lá na prateleira da direita, no número 41.
Depois, mais duas tomas de água, o gelo e os ultrassons no joelho da mãe, o jornal, os livros, a bica, a conversa, a raspadinha com mais ou menos sorte, a escrita, um ou outro e-mail...
Juro-vos que se eu pudesse, faria passar um rolo compressor sobre o tempo, distendendo-o e prolongando a estadia por ali, no sítio onde os olhares nos abraçam mesmo quando os braços repousam.
O amor é o berço e a casa dos Homens, fluindo de modo tão livre, espontâneo, e acelerado, que é impossível reconhecer-lhe o sentido num determinado instante. É ato desnecessário, mirarmo-nos ao espelho da água das fontes, porque jamais saberemos se é de recetor ou emissor, o estatuto que o amor nos cola aos gestos e às palavras. Ou será de ambos?
Para nos fazer crescer, o amor é mais importante que as proteínas da carne, e contra as agressões exteriores, é mais eficaz do que as vitaminas.
O amor não vive de impulsos, é sereno, mas também nunca se desarruma.
De tarde, no Gerês, e neste verão de 2017, apreciávamos o sossego, mesmo sem sesta, repousando sobre os parágrafos de uma conversa desprovida de qualquer pressa, acariciando a face na almofada do riso das melhores memórias... Enquanto a minha mãe fazia crochet.

Na nossa casa, definitivamente, o amor insiste enlear-se no fio branco com que se tecem as rendas.
 

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