As praias


Despojei o corpo, do medo e dos arquétipos, entornando depois sobre um instante qualquer, a areia toda das praias onde brinquei descalço, e que transportei, alegre, com a crucial ajuda dos bolsos das calças.
Sobre essa ampulheta informal que carrega todas as eras da minha história, há um velho búzio que tomou o canto das ondas e o guardou com religiosa fidelidade, e há árvores entretidas a desenharem sombras que perfumam a matiz alourada das dunas.
Desse instante em que me sentei no chão cruzando as pernas e descruzando a liberdade, afastei os contentores e a lama, varri o pó, o eco das promoções e das promessas de produtos, serviços e candidatos, sacudi as ervas já mortas, e agitei o ar impregnado de monóxido de carbono, fazendo nascer a praia que sonhei; muito a tempo de sair a navegar.
Hoje, e sempre, eu sou este encontro de cor indefinida, mas muito minha; eu sou a história entrelaçada nos sonhos todos que guardei e trouxe do mar, repousando e tomando fôlego da brisa fresca que há sob os lençóis de folhas que se interpõem entre mim e o sol, ou entre mim e o luar.
Por vezes chamam-nos loucos, tontos e inconsequentes, tão só porque rimos entre a sorumbática pose dos importantes, ou porque ousamos falar de esperança, rasgando violentamente, os panos negros das sacras vias de quem não sabe ver o Céu que há para lá da cruz; mas viver, definitivamente, é a arte de construir praias nas retas ou nas curvas que nos oferece o tempo.
Sem medo e sem modelos, sabendo que o mar, que até pode parecer uma parede, é uma estrada infinita e larga para quem ousa navegar.
 

(Agradeço a foto à minha amiga Margarida Garimpo. Timor, praia de Jaco)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O MUNDO MAIS BONITO E CONFORTÁVEL NUM TEMPO A CHEIRAR A FLORES

“Quando mal, nunca pior” ou a inexplicável rendição à mediocridade

TESTAMENTO DE UM ANO COMUM